São incontáveis as explicações sobre a origem do termo “Black Friday”, o período de descontos e promoções que acontece no final de novembro. Embora seja uma data festiva, muitas das hipóteses sobre seu surgimento ganharam conotação negativa associada à questão racial. Nesse contexto, um número crescente de marcas vem abolindo o uso da expressão ao substituir o “black” em suas liquidações.
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Na tradução para o português, a expressão remete a “Sexta-Feira Negra”, no sentido literal. A data surgiu nos Estados Unidos e marca a reabertura do comércio após o feriado de Ação de Graças nos Estados Unidos (toda última quinta-feira do mês). No Brasil, onde a data não existe, as empresas aproveitaram o calendário do evento para também oferecer descontos a partir de 2010.
Não há registros que confirmem de onde saiu o nome “Black Friday”, mas algumas versões ganharam força. Uma delas, nunca comprovada, remonta à escravidão nos EUA do século XVIII. Muitos negros que chegavam da África e eram vendidos como mercadoria ficavam enfraquecidos e doentes pelas condições indignas de trabalho e alimentação. Por esse motivo, eram supostamente vendidos a preços abaixo do mercado em feiras que aconteceriam às sextas-feiras.
Uma outra explicação dá conta de que os comerciantes americanos precisavam esvaziar seus estoques antes do Natal e passaram a fazer grandes liquidações de preços após o feriado. Mas o alvoroço causado pelos descontos levou a um aumento da violência e de engarrafamentos nas ruas. Com isso, os patrulheiros da Filadélfia teriam apelidado a data de “Black Friday”, já com um sentido pejorativo para o termo.
Há ainda outra versão conhecida, mas com conotação positiva. Nos EUA, a palavra “black” também é usada quando uma empresa fecha as contas “no azul”, ou seja, obtém lucro. A data promocional seria então uma forma de os comerciantes conseguirem encerrar o mês de novembro no positivo, já que o feriado de Ação de Graças era considerado fraco em vendas.
Marcas que aboliram o termo
Recentemente, algumas empresas deixaram de usar a expressão “Black Friday” em suas promoções. No final de setembro, a varejista de cosméticos Grupo Boticário anunciou que deixaria de chamar a época de promoções pelo nome e encabeçou uma campanha para que outras empresas fizessem o mesmo.
“Respeitando os movimentos que sentem desconforto com o termo, decidimos parar de refletir e começar a agir – não teremos mais o termo Black Friday no Grupo Boticário”, escreveu no LinkedIn o presidente da companhia, Artur Grynbaum, ao mencionar a falta de dados sobre a origem da expressão.
A americana Avon seguiu o mesmo caminho. Após se comprometer a incluir mais negros no quadro de funcionários da empresa e em suas propagandas, adotou o termo “Best Friday”. Sua dona, a fabricante de cosméticos brasileira Natura (NTCO3), também mudou o nome de sua campanha promocional, para “Natura Friday”.
“As empresas despertaram para o novo comportamento do consumidor, que hoje faz escolhas entre uma marca e outra não só baseadas na qualidade e preço dos produtos, mas também nos valores que elas defendem e como elas se posicionam diante de assuntos como diversidade, gênero e questões raciais, que ganharam espaço na sociedade contemporânea”, explica o professor Eric Messa, coordenador do curso de publicidade de propaganda da Faap.
A rede de postos Ipiranga, do grupo Ultrapar (UGPA3), adaptou o nome da data para “Yellow Friday“. Segundo a empresa, a referência não é só por causa da identidade visual da marca. “Também desassocia da cor preta/negra, que pode ser interpretada com viés racial. Esse processo é reflexo da cultura da companhia, que internamente trabalha uma série de ações para promover mais diversidade e inclusão”, informou em comunicado.
Além do discurso
Messa pontua que, diante do olhar crítico da sociedade atual, apenas se posicionar não basta. Para o consumidor de hoje, as marcas precisam ir além do discurso e ser agentes de mudança. Ele cita o exemplo da varejista Magazine Luiza, que anunciou um programa de trainees para pessoas negras, que gerou reações na internet.
“O consumidor está de olho não só na geladeira que Magalu oferece, da mesma marca que em outras redes, mas também no que a empresa que vende essa geladeira tem feito para a sociedade”, exemplifica, citando estudos que mostram que parte dos consumidores estão dispostos a pagar valores mais altos por produtos de empresas em cujos valores eles se identificassem.
Caso Carrefour
Um caso mais delicado é o do Carrefour. Alvo de protestos após a morte de João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos que foi brutalmente assassinado por seguranças de uma unidade do grupo em Porto Alegre (RS), a empresa tirou de seu site qualquer menção ao termo “Black Friday”, substituindo-o por “Ofertou”. O crime foi associado a racismo e colocou a varejista em uma de suas piores crises de imagem.
“Neste caso em particular, foi uma ação imediata de gerenciamento de crise”, explica Messa, para quem a questão não deve ser esquecida e deve deixar consequências graves para a reputação da empresa no longo prazo. Tanto que a companhia anunciou a criação de um fundo de inclusão racial para combater o racismo após o episódio, com aporte inicial de R$ 25 milhões.
Apelo aos comerciantes
No começo de novembro, a Defensoria Pública do Amazonas passou a recomendar aos comerciantes que trocassem o termo “Black Friday” por “Semana Promocional”. O documento encaminhado à Câmara dos Dirigentes Lojistas de Manaus (CDL) e à Associação Comercial do Amazonas (ACA) argumentava que a expressão carrega conotação racista implícita, em razão de uma suposta correlação entre produtos com descontos e a cor da pele.
“Como se a cor significasse algo com valor diminuído”, explica a Defensoria. “A palavra preto (black), independentemente da língua ou vernáculo na qual é articulada, é utilizada de forma pejorativa, empregada no menosprezo a uma raça inferiorizada pela intolerância e subjugo histórico”, afirmaram os defensores no ofício.
Na avaliação de Messa, havendo ou não uma relação entre a origem do termo “black” e o racismo, a pauta é muito presente e qualquer referência a ela pode ressaltar o tema aos olhos da sociedade”. Segundo o professor da Faap, ao substituir o termo, as marcas estão passando a mensagem de que não querem dar continuidade ao racismo estrutural. “Hoje, as marcas que não evidenciam sua importância na vida das pessoas acabam não conseguindo sobreviver”, aponta Messa.