Os clubes da Série A atingiram um recorde histórico de arrecadação em 2024: R$ 10,2 bilhões em receita total, alta de 10% ante 2023. O dinheiro veio de todos os lados: patrocínios inflados pelas casas de apostas, vendas de jogadores, bilheteria, transmissões e outros contratos comerciais. Mesmo assim, o resultado consolidado foi bem ruim: a dívida dos clubes atingiu um patamar recorde, de R$ 14,6 bilhões – 22% maior do que no ano anterior.
Não é um acidente. A edição mais recente do relatório Convocados 2025, um raio-X financeiro da elite do futebol nacional, mostra que o setor está preso a um ciclo de repetição. A situação atual lembra aquela vivida entre 2013 e 2014, quando também houve uma explosão de receitas – puxadas à época por novos contratos de transmissão – e um consequente descontrole nos gastos.
“Regredimos 11 anos. Nesse período, não aprendemos nada”, resume o economista Cesar Grafietti, autor do relatório, elaborado em parceria com a Outfield e patrocinado pela Galapagos Capital.
“Ter dinheiro ajuda, mas gestão é fundamental. A receita é uma condição necessária, mas não suficiente”, resume o economista.
O ciclo da dívida
Na entrevista ao InvestNews, Grafietti detalha o mecanismo que perpetua o endividamento: “Você precisa investir para ser competitivo, e ser competitivo significa gastar mais do que o adversário. Vira uma bola de neve. Quem tem condição investe, quem não tem tenta acompanhar”. Com mais dinheiro entrando, em vez de amortizar passivos, os clubes buscam resultados rápidos em campo, comprometendo o futuro financeiro.
É justamente esse movimento que explica o aumento da dívida operacional. Em 2024, os clubes gastaram R$ 3,5 bilhões em compras de atletas, praticamente o dobro do R$ 1,75 bilhão gasto em 2023. Boa parte dessas aquisições foi feita com dinheiro emprestado, e gera novos custos no ato. “Você tem que pagar os clubes de origem, os salários [eventualmente maiores] desses atletas… E muitos clubes não vão conseguir quitar o que devem. O negócio não gera receita na mesma velocidade das dívidas”, alerta Grafietti.

Além disso, os times daqui dependem cada vez mais de receitas variáveis, como vendas de atletas. Em 2024, essas transferências geraram R$ 2,3 bilhões, mas a dependência desse recurso só reforça a instabilidade. “É uma receita errática. Pode vir ou não, e muitos clubes fazem orçamento contando com ela. Isso é temerário”, diz Grafietti.
Na prática, é como fazer o orçamento doméstico do mês contando com a ideia de que uma ação que você tem na carteira vá passar por uma alta histórica nas próximas semanas.
A armadilha se completa com a alta dos juros. A Selic elevada é uma questão estrutural no país – a média dos últimos 10 anos é de 9,6%. E agora está pior, você sabe, com a taxa básica em 14,75%. Nisso, os serviços da dívida consomem uma parte significativa da receita operacional. O Corinthians, por exemplo, deve R$ 2,3 bilhões – e gasta cerca de R$ 360 milhões por ano só com despesas financeiras.
Considerando todos os clubes da primeira divisão no Brasileiro do ano passado, os gastos isso ficaram em R$ 1,15 bilhão, equivalente a 11% da receita total. “É dinheiro que falta na operação. Poderia ser usado para melhorar o elenco, modernizar estrutura, investir na base. Mas vai para juros e amortizações”, afirma o economista.
Outro ponto relevante é o peso das dívidas com o governo. Uma parte considerável do passivo dos clubes se refere a débitos tributários – especialmente INSS, FGTS e impostos trabalhistas. Isso acontece, segundo Grafietti, porque os clubes funcionam como substitutos tributários nas relações com os jogadores: “Eles recolhem o imposto na hora em que fazem o pagamento, mas acabam não repassando esse valor ao governo. Usam o dinheiro para outras finalidades emergenciais, como salário ou contratação”.
Isso gera um ciclo de inadimplência crônica e renegociações eternas, com parcelamentos longos que apenas adiam o problema.
O passivo fiscal não só compromete o fluxo de caixa como também gera insegurança jurídica, reduzindo a atratividade dos clubes perante investidores e financiadores. Em muitos casos, os clubes deixam de pagar obrigações básicas para fechar o mês, criando um ambiente de instabilidade generalizada.
A imagem mais didática para entender a má gestão talvez seja a seguinte: o faturamento total dos clubes brasileiros está próximo a 20% da receita dos clubes que integram a Premier League – liga inglesa que é hoje a mais rica do mundo. As dívidas, no entanto, equivalem a 50%.
Jogo desorganizado
Mesmo após um processo de profissionalização iniciado entre 2014 e 2015, poucos clubes conseguiram de fato mudar a lógica de gestão. Flamengo e Palmeiras são os grandes exemplos positivos.
Mais recentemente, o São Paulo se destacou por firmar um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (FIDC) com as gestoras Galapagos e Outfield. O mecanismo limita gastos e impõe regras de governança financeira. “É uma solução rara, porque tem um ator externo controlando os gastos”, explica Grafietti.
Mas o fato é que o futebol e o mercado financeiro têm se aproximado cada vez mais. A Galapagos, além do FIDC do São Paulo, tem ainda outro fundo focado em antecipação de recebíveis com o objetivo de fornecer capital de giro a clubes em dificuldades. O segredo é ter sempre “bons contratos e boas garantias”, explicou Joel La Banca, sócio da Galapagos, no evento de lançamento do relatório, na última segunda-feira (2).
A aproximação entre gestoras e a bola lembra o movimento recente da Faria Lima em direção ao agronegócio. Há necessidade de financiamento e poucos bancos dispostos – e com know-how suficiente – para emprestar aos clubes.
Para os gestores, as principais oportunidades estão nos maiores times, aqueles com mais capacidade de receita e que, portanto, conseguem apresentar mais garantias. Primeiro, financiam os bons, em termos de ativos e recebíveis. Depois, os mais ou menos. Por fim, os de alto risco.
“Mas se não houver critério [na escolha dos clubes], vem a quebradeira”, pontua Grafietti. “Enquanto o futebol brasileiro continuar sendo gerido com foco em resultado de curto prazo, em vez de sustentabilidade de longo prazo, ele vai continuar nesse ciclo”.
A pergunta central, então, não é se o futebol brasileiro tem dinheiro. Ele tem. A questão é o que os clubes vão fazer com ele: repetir os erros do passado ou, finalmente, quebrar o círculo vicioso.
Grafietti joga no time dos otimistas.
“Eu acredito na indústria do futebol e tenho a esperança de que essa organização financeira vai acontecer, espero que mais cedo do que mais tarde. Ou isso acontece, ou em 20 anos alguns clubes não estarão mais aqui.”
