De longe, o cenário lembrava o lançamento de uma montadora consolidada. De perto, a ilusão se desfez. Sob os pneus, pequenas rodinhas ajudavam a movimentar o veículo – por enquanto, a Lecar Campo é só uma maquete em tamanho real, um mockup feito em isopor, madeira, papelão e adesivos e leds.

Enquanto exibe protótipos estáticos, a Lecar fala em investir R$ 870 milhões para erguer uma fábrica de 90 mil metros quadrados no norte do Espírito Santo. A planta teria capacidade para produzir 120 mil veículos por ano a partir do segundo semestre de 2027. Lá, serão feitas a Lecar Campo e também o Lecar 459, um cupê híbrido cuja maquete realista também ocupava espaço no estande da empresa, nos fundos do Salão do Automóvel.
São os planos de agora. A Lecar já prometeu fabricar carros elétricos, mas mudou para híbridos. A fabricação já foi anunciada para o final de 2024, depois para o agosto de 2026. A fábrica, inicialmente, seria em Caxias do Sul (RS), depois seria erguida no terreno da fábrica desativada da Ford em Camaçari (BA) – que acabou nas mãos da BYD.
No centro de tudo está o capixaba Flávio Figueiredo Assis. Fundador e principal acionista da Lecar, ele se apresenta como CVO, “Chief Visionary Officer“, gosta de ser chamado de “Elon Musk brasileiro” e mistura sua imagem pessoal à da Lecar. No Salão de Automóvel, estava disponível para fotos e vídeos com os fãs. A montadora republica em seus perfil no Instagram os registros de entusiastas da marca ao lado de Flávio, sempre vestido com as cores da bandeira brasileira.
Ele diz ter feito fortuna com a venda da Le Card – o nome não é coincidência –, uma empresa de cartões de benefícios. Ele vendeu sua parte em 2022, por um valor não revelado. Ao InvestNews, disse que foi como “embolsar em um dia o equivalente a 100 anos de lucro” e que está disposto a investir todo o seu patrimônio na Lecar.
A Lecar tem outros sócios? “Não, só eu por enquanto”, disse Flávio. “Eu e Deus“.
Apesar disso, mesmo antes de ter fábrica pronta, linha de produção operando ou qualquer carro rodando emplacado, a Lecar já está aberta para negócios. Tanto a Campo quanto o 459 custam R$ 159,3 mil e podem ser adquiridas por meio do que a Lecar chama de “Compra Programada”, um plano de pagamento em boletos, sem juros, em 48, 60 ou 72 meses. Quem aderir vai receber o carro na metade do plano de pagamentos, promete a Lecar.
Ela faz isso, no entanto, sem a devida autorização do Ministério da Fazenda. Vamos aos detalhes.
A portaria e o fundo
Na comunicação oficial da empresa, a Compra Programada aparece como algo semelhante a um consórcio, mas sem taxas e sem juros. O discurso é de facilitar a compra e o planejamento financeiro dos interessados. Em seu site, a Lecar afirma que o cliente sabe exatamente quando vai receber o automóvel: sempre na metade do plano escolhido.
A Lecar diz que a Compra Programada é “uma engenharia financeira muito simples por trás dessa forma inédita de comprar carro zero km, na metade do plano escolhido você recebe o seu carro e temos um cliente novo aderindo ao plano e suprindo o fluxo de caixa”.
Perguntado sobre o público alvo, o vice-presidente de marketing, vendas, pós-venda, inovação e novos negócios, Rodrigo Rumi, diz que a Compra Programada foi feita para atender “as pessoas que de fato apostam no projeto, os entusiastas da Lecar”. A captação não conta com apoio de banco ou seguradora.
“O dinheiro vai para uma conta – e vai ser usado para produzir esses carros no futuro”, diz o executivo, que tem passagens por empresas como Toyota e CAOA.
A companhia argumenta que a operação está apoiada na Portaria 7.660, de 2022, que instituiu um regime especial de captação antecipada de poupança popular. A norma define tipos específicos de campanhas e pré-vendas que podem receber dinheiro de pessoas com base em uma promessa futura.
Ela determina que as empresas peçam autorização prévia, estabelece prazos máximos para os planos e vincula o uso da portaria a um desenho claro de garantias para o consumidor. A norma foi desenhada para dar transparência à captação e mais segurança ao consumidor.
A Lecar, no entanto, não tem autorização para captar esse dinheiro. A Secretaria de Prêmios e Apostas, que faz parte do Ministério da Fazenda, é o órgão responsável por emitir essa autorização. E ela disse ao InvestNews que “não emitiu Certificado de Autorização para ‘Compra Programada Lecar’”.
Por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), a reportagem conseguiu o rol de empresas autorizadas a fazer a captação antecipada de poupança popular. A lista enviada pela Controladoria-Geral da União (CGU) menciona sete empresas certificadas entre 2023 e 2025 – a Lecar não está entre elas.

O InvestNews perguntou à Lecar pela certificação. A Lecar empresa não respondeu. Ainda assim, o número da portaria aparece no topo do contrato da “Compra Programada Lecar” e é constantemente repetido em vídeos e apresentações da montadora.
A advogada Graziela Frati, especialista em direito societário e empresarial, destaca uma exigência básica da portaria que não aparecem no caso da Lecar: a necessidade de pedido formal anterior ao início das vendas.
O tributarista Luís Garcia reforça o diagnóstico. Ele lembra que a portaria exige capacidade industrial constituída ou em implantação avançada, além de garantias sólidas para proteger o dinheiro do consumidor. “Não basta citar o número da portaria”, pontua.
Além do dinheiro dos entusiastas, via Compra Programada, a Lecar se prepara para atrair investimentos externos. O veículo será o LCR Fundo de Investimento Financeiro Multimercado, constituído em agosto de 2025 e ainda em fase pré-operacional.
O fundo será administrado pela gestora BFL, casa que já recebeu duas multas da Comissão de Valores Mobiliários (CMV) em casos que envolviam “falta de dever de diligência” na gestão de fundos. A BFL também foi citada em documentos da Operação Carbono Oculto, da Polícia Federal, que investiga esquemas de lavagem de dinheiro por meio de fundos e fintechs. A gestora também foi alvo de ordens de busca e apreensão no âmbito da mesma operação.
O InvestNews procurou a BFL, mas não houve resposta.

O comprador
Em um projeto que ainda não ergueu fábrica, compradores são, na prática, financiadores iniciais. Claudir Cremonez é um deles. Antes da existência do Compra Programada, deu um sinal de R$ 10 mil para garantir sua Lecar Campo, com entrega prometida para agosto de 2026.
Fã da WEG, o empresário paranaense de 53 anos se empolgou com o projeto da Lecar quando soube que a empresa seria uma das fornecedoras dos carros da montadora brasileira. A Lecar trabalha para que o gerador elétrico do carro seja da WEG, e a catarinense confirma ter assinado acordos com a montadora.
Interessado, Claudir pesquisou sobre a empresa, passou a seguir Flávio Figueiredo nas redes sociais e gostou do que viu quando deu de cara com um estande da Lecar em uma feira de do setor de energia solar ocorrido em São Paulo, meses atrás. Era a Lecar Campo, segundo Claudir, que provavelmente confundiu o mockup com um automóvel de verdade. “O carro estava lá mesmo”, disse ao InvestNews. “Não podia entrar nele, mas estava lá o carro completo”.
As “concessionárias”
A estrutura comercial da Lecar também foge ao tradicional. A ideia é transformar lojas multimarcas de seminovos em pontos oficiais da marca, como um showroom. Esses pontos não terão estoque. Serão locais de relacionamento, exposição de maquetes e fechamento de contratos da Compra Programada.
A venda é feita exclusivamente por esse sistema, sem pronta entrega. A primeira casa foi inaugurada em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, onde funciona uma empresa que faz blindagem de automóveis. O plano é chegar a 150 pontos de venda até o fim de 2026.
Para abrir um desses pontos de venda é necessário assistir a vídeos de treinamento no site da empresa, fazer uma avaliação online e pagar uma taxa de R$ 459. “Após o processamento do pagamento da taxa, você terá acesso a todas as áreas da plataforma e habilitação ao link de vendas”, promete o site.
Além das lojas físicas, a Lecar aposta em uma “rede de executivos Lecar“. São representantes independentes com a missão de impulsionar a Compra Programada. No site, a companhia define o “executivo Lecar” como “um modelo feito para quem tem habilidades no digital, aproveitando a força das redes sociais”.
O histórico
Ao InvestNews, Flávio Figueiredo disse que seu primeiro empreendimento, a Financial Contabilidade, em Vitória, existe até hoje. Em 2012, fundou a Le Card, administradora de cartões de benefícios. Dez anos depois, foi vendida.
Os valores totais não foram divulgados, mas sabe-se que a transação previa o pagamento de 98 parcelas mensais de US$ 50 mil, num total de US$ 4,9 milhões. A informação consta de um processo que Flávio moveu contra os compradores.
Ao InvestNews, ele afirma que os pagamentos “são recebidos direitinho”, mas que precisou acionar a Justiça para ficar mais protegido.
Flávio também tentou emplacar uma fintech chamada Lebank, nunca devidamente registrada no Banco Central. A marca e o conjunto visual evocavam o antigo Banco Nacional, símbolo associado ao boné azul de Ayrton Senna.

A massa falida do Nacional processou a Lebank por uso indevido de marca. O Tribunal de Justiça entendeu que havia “intuito parasitário” na estratégia e proibiu o uso da marca.
Flávio afirmou ao InvestNews que a marca do Banco Nacional estava em decadência e que sua equipe entendeu que podia registrá la.
O sonho e o risco
Na narrativa de Flávio Figueiredo, a Lecar é a chance de o Brasil ter uma montadora nascida em um ciclo de mudança tecnológica. O projeto remonta à ambição industrial de um país que viu outros projetos de “carro nacional” falharem sucessivamente.
A distância entre o que é anunciado e o que existe hoje permanece larga: carros ainda em maquete, fábrica sem construção iniciada e um mecanismo de financiamento amparado em uma portaria cuja autorização não foi concedida pelo governo.
“Saí do Salão do Automóvel com a impressão de que a Lecar vai demorar um pouco mais para acontecer”, reconhece. “Mas é só um pouquinho mais do que eu estava imaginando.”