“E para quem vão os direitos autorais desse hit?”.
Essa foi a pergunta que um usuário do TikTok fez para Marllon Motta, responsável por “Samba de Dragão”, canção que há dias viraliza como música-tema da novela global “Pé de Chinesa”.
Acontece que Pé de Chinesa é, na verdade, uma fanfic: uma história de mentirinha, criada por muitas pessoas – e um ramo que recebeu um belo empurrão com o advento da inteligência artificial generativa.
A novela fake surgiu de uma zoeira num fórum de entretenimento do Pandlr do qual Marllon faz parte. Empolgado com o meme e entusiasta das ferramentas de IA, dedicou algumas horas para fazer a sua parte na “produção” da “novela”. Tudo pra ver seu trabalho ser tomado por um desconhecido, dias depois.
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Com a ajuda do ChatGPT, Marllon compôs a letra. Depois, valeu-se da Suno AI, uma aplicação que cria canções, para fazer o arranjo de uma música-com-cara-de-tema-de-novela-da-Globo. A ferramenta produziu o samba viral cujo “intérprete” de voz rouca tem um timbre que lembra muito o do cantor Seu Jorge.
“Olha os zóim puxado dela/ Ling, ling, ling, ling, mexe o corpo inteiro/ Aqui só entra se falar mandarim brasileiro/ Ling, ling, ling…”, diz a música publicada por Marllon no dia 22 de agosto e desde então reproduzida milhões de vezes em várias redes sociais.
Sim, essa mistura de Brasil com China exagera nos estereótipos – o que rendeu até acusações de xenofobia. Ao InvestNews, Marllon explicou que Pé de Chinesa é uma sátira de “Negócio da China”, novela exibida pela Globo entre 2008 e 2009 e que foi acusada de fazer yellow face – quando atores brancos se passam por asiáticos.
Mas o meme superou a polêmica. A música e a trama viraram manchete em portais de notícias populares como G1 e Metrópoles, acabaram incorporadas às estratégias de marketing digital de Magazine Luiza, O Boticário, Dolly Refrigerantes… Artistas e influenciadores “escalados” para o folhetim fake continuam postando memes sobre Pé de Chinesa, quase sempre ao som do ling ling.
Mas, nos créditos, a autoria da música-meme não está atribuída a Marllon Motta – ou à Suno AI –, e sim de um tal Lucas Emanuell Campos Ferreira, ou só Lucas Campos – que nem Marllon sabe quem é, nem o InvestNews conseguiu localizar ou mesmo identificar se é uma pessoa de verdade.
Cifraclub, Spotify, TikTok. Em todo canto da internet Lucas Campos aparece como dono da canção. No canal do YouTube em que publicou Samba de Dragão – uma semana depois de Marllon ter trabalhado seu prompt na Suno AI –, o DJ Lucas Campos, como ele se refere a si mesmo, diz fazer todo tipo de música, “desde funk vibrante até gospel inspirador”.
Não se perca. ChatGPT para a letra, Suno para a o arranjo. Depois veio o Picstart e o Gradiente para trabalhar as imagens das celebridades do elenco de mentira, o Avatarro para fazer a caracterização dos personagens como chineses da Antiguidade, o Runway para dar movimento às imagens. Por fim, Marllon usou o CapCut para editar – app da ByteDance, chinesa dona do TikTok.
No TikTok, ele contou aos seus seguidores o que aconteceu. Disse que fez a música “para um meme, num grupo” e que nem pensou em registrar a canção porque “música de inteligência artificial não é música”.
“Ninguém canta, ninguém fez o arranjo. Não faria sentido registrar e ganhar em cima disso”, argumentou.
A real é que Samba de Dragão não deveria ter dono nenhum, como explicaram advogados consultados pela reportagem. A própria Suno AI proíbe que músicas criadas com a ferramenta tenham uso comercial. E esta também é a perspectiva de Marllon: “Eu não queria que tivesse um dono, eu fiz de meme, joguei na internet pra que qualquer um pudesse fazer o que quiser.
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Agora, ele decidiu que vai tentar o registro da música. Além da canção, Marllon diz ter empenhado dois dias na produção de uma vinheta para a novela, também viral.
“Eu não queria que ninguém ganhasse [dinheiro] em cima da música, mas se fosse pra alguém ganhar, tinha que ser eu”, disse Marllon Motta ao InvestNews.
Especialista em propriedade intelectual, o advogado Pedro de Abreu M. Campos, do escritório Di Blasi, Parente & Associados, disse fazer sentido que Marllon tente o registro da vinheta.
“Ele pode ser considerado autor se tomou as decisões criativas para chegar à obra final, efetivamente criando uma obra e não apenas publicando o mero resultado de um simples prompt”, explica, vendo paralelo com a instalação de Refik Anadol no MoMA, em Nova York: o designer turco-americano usou a IA generativa para reimaginar o acervo do museu.
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O golpe de US$ 10 milhões
O caso da música de Pé de Chinesa é só a pontinha do iceberg de um debate complexo e global sobre o impacto da IA generativa na criação de conteúdo audiovisual. As gigantes da indústria fonográfica Warner, Universal e Sony foram à Justiça contra a Suno AI, argumentando que o modelo de IA da ferramenta tem sido ilegalmente treinado por gravações protegidas por direitos autorais – uma polêmica que também atinge produtos como o ChatGPT, da OpenAI, e o Gemini, do Google.
Além do debate sobre a quem pertence os direitos de músicas feitas por IA e como remunerar os artistas cujo trabalho foi usado para treinar os modelos, há também quem use a nova tecnologia para cometer fraudes milionárias.
Nos Estados Unidos, um homem de 52 anos chamado Michael Smith faturou mais de US$ 10 milhões manipulando plataformas de streaming com a ajuda de inteligência artificial. Ele teria inventado bandas que tocavam músicas feitas por IA e que foram reproduzidas bilhões de vezes por robôs no Spotify, na Apple Music e na Amazon Music.
Acusado de fraude eletrônica, ele aguarda julgamento na prisão. Se for condenado, pode pegar até 20 anos de cadeia.
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