Como o Telegram se tornou um ‘mercadão do crime’ na internet
A prisão do fundador Pavel Durov chamou a atenção para o modo em que redes de pedofilia, ladrões de identidade e traficantes de drogas usam o aplicativo como vitrine para vender seus produtos
Elisabet Balk não pensou duas vezes quando fez o upload de uma selfie e de uma foto da sua carteira de identidade para verificar uma nova conta de rede social. Então, ficou aterrorizada quando descobriu que as imagens estavam à venda no aplicativo de mensagens Telegram.
Os dados privados da esteticista finlandesa faziam parte de uma grande quantidade de material obtido ilegalmente no novo mercado preferido dos criminosos.
O Telegram, cujo CEO, Pavel Durov, foi detido na França no mês passado, tornou-se a principal plataforma de internet para comprar de tudo, desde dados hackeados e armas até drogas ilícitas e material de abuso sexual infantil, de acordo com atuais e ex-policiais e pesquisadores de crimes cibernéticos.
O Telegram, parte rede social, parte aplicativo de mensagens, é fácil de usar. Tudo o que você precisa para abrir uma conta é um número de telefone e o aplicativo garante que nunca divulgou dados do usuário a terceiros. Com sede em Dubai, o Telegram adotou uma abordagem laissez-faire para moderar o conteúdo.
As autoridades judiciais francesas acusaram Durov de cumplicidade na distribuição de pornografia infantil, drogas ilegais e software de hacking no aplicativo, que diz ter quase um bilhão de usuários. As autoridades também o acusaram de se recusar a cooperar com as investigações sobre atividades ilegais.
Durov disse na quinta-feira que o Telegram não era perfeito, mas também não era uma “espécie de paraíso anárquico”. Ele afirmou que o Telegram sempre esteve aberto ao diálogo com os reguladores.
O diretor de operações do Telegram, Mike Ravdonikas, explicou que a explosão do número de usuários causou “dores de crescimento na moderação de conteúdo”, algo que estava tentando resolver. O Telegram não foi projetado para criminosos, mas para a esmagadora maioria dos usuários legais, garantiu ele.
Os moderadores do Telegram excluem milhões de postagens prejudiciais por dia, garantiu ele, e combatem ativamente o conteúdo ilegal, incluindo a venda de dados privados e o compartilhamento de material de abuso sexual infantil.
Ladrões de identidade, redes de pedofilia e traficantes de drogas usam o aplicativo como vitrine para vender seus produtos, de acordo com pesquisadores e registros de chats. Um estudo realizado em fevereiro por uma organização internacional sem fins lucrativos descobriu que o Telegram era o aplicativo mais usado entre os infratores para visualizar e compartilhar conteúdo de abuso sexual infantil.
O canal Telegram que postou as imagens de Balk foi lançado há dois anos e tinha cerca de três mil assinantes.
Todos os dias anunciava passaportes, carteiras de identidade e selfies como “amostras” para pacotes maiores, que vigaristas poderiam usar para abrir contas bancárias em nome das vítimas. Para comprar um pacote completo, o dono do canal dizia aos membros para contatá-lo em um chat privado. O canal foi retirado do ar depois que o Wall Street Journal fez perguntas ao Telegram sobre o assunto para este artigo.
Existem milhares de canais e grupos no Telegram que oferecem identidades roubadas que podem ser usadas para abrir contas bancárias e de investimento. Alguns afirmam oferecer contas bancárias já criadas com detalhes roubados. Um canal chamado Bank Store Online listou contas em mais de 60 bancos e exchanges de criptomoedas para venda, variando de US$ 80 para uma conta pessoal a US$ 1.800 para uma comercial. Os pagamentos eram feitos em criptomoedas.
Na Rússia, onde Durov lançou o Telegram em 2013, ela também é a plataforma onde os intermediários organizam acordos que contornam as sanções dos EUA, como o contrabando de peças de armas, informou o WSJ anteriormente.
Vários grupos anunciam a venda de drones e Starlinks para combatentes russos na Ucrânia. Em fevereiro, o dono da rede de satélites, Elon Musk, tuitou que nenhum kit da Starlink havia sido vendido direta ou indiretamente para a Rússia, até onde a empresa sabia.
“É o marco zero para todas as atividades ilícitas que você possa imaginar”, disse Evan Kohlmann, fundador da Cloudburst Technologies, que monitora crimes cibernéticos no Telegram e em outros lugares, e consultor frequente de agências americanas.
“A próxima iteração”
Antes da ascensão do Telegram, os criminosos normalmente se reuniam em áreas da internet conhecidas como darkweb. Esses sites não são indexados por navegadores da web e só podem ser acessados com software específico que oculta a identidade dos usuários. Os usuários regulares da internet raramente os encontram. Um exemplo bem conhecido foi o mercado negro online Silk Road, que já foi fechado.
Os sites de mercado na darknet são lentos, com interface desajeitada e servidores vulneráveis a remoções da lei. O Telegram é rápido e funcional, com recursos que facilitam a compra e venda de coisas diretamente no aplicativo.
A utilidade da plataforma turbinou vários tipos de supostas atividades criminosas, particularmente a venda de dados pessoais roubados e material de abuso infantil, dizem os pesquisadores.
LEIA MAIS: Com ou sem Maduro, Chevron continua querendo explorar o petróleo da Venezuela
O Telegram marca “a próxima iteração” depois que a internet permitiu que os pedófilos se agrupassem online, disse Dan Sexton, diretor de tecnologia da Internet Watch Foundation, linha direta britânica de abuso sexual infantil que coleta dados em todo o mundo.
A IWF informou ter descoberto que os sites mais novos que vendem material de abuso infantil quase todos direcionam as pessoas ao Telegram para trocar detalhes financeiros e fazer transações.
Ao contrário de outras empresas de rede social, como Meta e Snap, o Telegram não denuncia imagens de abuso sexual infantil à IWF ou à sua contraparte nos EUA, o Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas, dizem os dois grupos. (O Instagram da Meta também enfrentou críticas sobre a moderação desse conteúdo.)
Em negociações com o Telegram, a IWF encorajou a empresa a se tornar um membro, o que daria a ela acesso ao seu vasto banco de dados de imagens de abuso marcadas, para impedir que os infratores as continuassem compartilhando.
“Não tivemos nenhum sucesso”, disse Sexton. O Telegram disse na sexta-feira que entrou em contato com a IWF para reabrir as discussões.
Ravdonikas, o executivo do Telegram, garantiu que as imagens postadas no aplicativo são verificadas no banco de dados da empresa de conteúdo de abuso sexual infantil, que vem tentando se expandir com dados de terceiros.
No final de agosto, uma seção do site do Telegram sobre denúncias de conteúdo ilegal disse que os bate-papos em grupo eram privados e que não “processaria nenhuma solicitação relacionada a eles”. Ravdonikas afirmou que os moderadores não podem verificar proativamente os bate-papos em grupo privados, que podem ter até 200 mil membros, mas os usuários podem denunciar o conteúdo compartilhado neles.
Dados pessoais para venda
Dados pessoais como os de Balk chegam ao mercado negro por meio de vazamentos e hacks. A jovem de 21 anos, que mora nos arredores de Helsinque, carregou a selfie e a imagem da carteira de identidade para verificar uma conta no site da OnlyFans, rede social para adultos. Ela disse que estava apenas brincando com alguns amigos.
Suas imagens apareceram em fevereiro deste ano no Telegram, quando o canal, chamado Dock Services, as postou como parte de um pacote de identidades finlandesas à venda, disponíveis por US$ 8 cada. Seu retrato parecia ter sido manipulado com uma ferramenta de inteligência artificial em um vídeo deepfake, que conseguiria enganar os processos de verificação online dos bancos, permitindo que vigaristas fizessem empréstimos ou lavassem dinheiro em seu nome, de acordo com pesquisadores de crimes cibernéticos que acompanharam seu caso.
LEIA MAIS: Como as mineradoras recuperaram o apetite por novos negócios
“Estou com muito medo agora”, escreveu Balk a outro usuário que a alertou sobre o vazamento. “Não sabia que isso poderia acontecer comigo.”
As fotos de Balk foram revendidas em outros lugares, inclusive pelo dono de outro grupo do Telegram, chamado “The Dragon Boi”, que se gabou de estar ganhando tanto dinheiro com fraude de identidade que comprou um Mercedes-Benz e um Rolex.
Balk registrou um boletim de ocorrência por roubo de identidade na Finlândia. Mais tarde, os policiais disseram a ela em uma decisão por escrito, revisada pelo WSJ, que haviam suspendido a investigação, pois não conseguiram identificar nenhum perpetrador. O OnlyFans comunicou a Balk em um e-mail que estava revisando qualquer suspeita de vazamento de dados.
Uma porta-voz do OnlyFans, com sede em Londres, disse que não pode comentar sobre contas individuais, mas seus próprios sistemas não foram comprometidos.
Sem nenhuma ação para remover suas imagens, Balk ainda se preocupa com o fato de os criminosos no Telegram estarem “vendendo meus dados repetidamente”.
Escreva para Angus Berwick em [email protected] e Ben Foldy em [email protected]
traduzido do inglês por investnews