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Xiaomi fez algo que a Apple não conseguiu: produzir um carro elétrico

A empresa chinesa faz panelas de arroz, smartphones, lâmpadas e agora um carro, mostrando o quão baixas são as restrições no mundo dos veículos elétricos

Por Sha Hua The wall street Journal
Publicado em
9 min
traduzido do inglês por investnews

A Xiaomi é uma empresa chinesa conhecida por suas panelas de arroz, robôs aspiradores, purificadores de ar e smartphones. Agora, conseguiu o que a Apple, sua rival de longa data, não conseguiu: produzir um carro elétrico e levá-lo ao mercado.

E fez isso em três anos.

Em seu mercado doméstico, a Xiaomi — pronuncia-se SHAU-mi — já tem uma lista de espera de compradores após o lançamento de seu sedan SU7 no final de março. Desde o início de abril, a empresa com sede em Pequim disse ter entregue mais de dez mil veículos elétricos e recebido quase 90 mil encomendas.

Com preços entre US$ 30 mil e US$ 42 mil, a empresa diz que o SU7 pode fazer até 800 quilômetros com uma carga — US$ 4 mil a menos que as versões comparáveis do Model 3 da Tesla na China e cerca de 320 quilômetros a mais por carga.

O feito da Xiaomi escancara uma nova realidade no centenário negócio automotivo: as restrições para fazer um carro diminuíram nos últimos anos com o surgimento dos veículos elétricos. E nessa nova realidade, a China está muito à frente.

À medida que o hardware se tornou mais simples, o foco nas características que fazem um produto ser atraente migrou decisivamente para o software e os recursos oferecidos.

“Os novos VEs são mais como computadores com baterias sobre rodas”, disse Paul Gong, chefe de pesquisa de automóveis da China na UBS. “As montadoras chinesas estão agora à frente de quase todas as outras ao longo de toda a cadeia de suprimentos de veículos elétricos.”

Para economizar tempo e custos, a empresa adotou práticas da Tesla e de outras montadoras, usou seu próprio know-how de desenvolvimento de produtos e se conectou à cadeia de suprimentos de carros em rápida evolução da China. Anos de aperfeiçoamento de laptops, liquidificadores e câmeras ajudaram a empresa a desenvolver recursos adaptados a uma base de consumidores exigentes, incluindo um painel de botões físicos destacável, que se prende magneticamente abaixo da tela central de 16,1 polegadas, para aqueles que não gostam de controlar o volume do som ou a posição do assento via tela sensível ao toque. 

A experiência em produtos de consumo também ajudou na integração do carro com smartphones e dispositivos domésticos. Por exemplo, a tela do telefone pode ser espelhada na tela sensível ao toque. Quando o carro está em modo “ir para casa”, ao atingir uma distância definida da casa, luzes inteligentes e aparelhos de ar-condicionado se ligam dentro da residência.  

Em abril, no maior salão anual de automóveis da China, executivos das maiores marcas de carros do mundo se aglomeraram em torno do stand da Xiaomi. Wang Chuanfu, presidente-executivo da BYD, a maior fabricante de veículos elétricos da China, apoiada por Warren Buffett, disse ao CEO da Xiaomi, Lei Jun, que inicialmente duvidou que a Xiaomi pudesse fazê-lo, mas que agora reconhece estar errado. “Não é pouca coisa. Respeito!”, disse ele, de acordo com imagens de vídeo desse diálogo.

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De olho na Tesla

A Xiaomi é a terceira maior fabricante de smartphones do mundo, depois da Apple (AAPL34) e da sul-coreana Samsung Electronics. Contudo, fazer carros exigia um novo nível de complexidade, disse Lei à emissora estatal China Central Television em uma entrevista em abril — mesmo sem ter que fazer o motor de combustão interna, que dificulta a produção de carros tradicionais.

A Xiaomi trouxe cerca de seis mil pessoas para trabalhar no projeto do carro, revelou Lei. Alguns foram recrutados de montadoras estrangeiras, como Porsche e BMW; outros foram transferidos de outros departamentos, disse Ma Yingbo, membro da equipe de marketing da Xiaomi. Entre os carros que a Xiaomi se inspirou estava o Model 3 da Tesla.

Para simplificar o desenvolvimento e reduzir custos, a Xiaomi adotou o processo de “gigacasting” da Tesla, que emprega fundição de alumínio em grande escala e alta pressão para criar a estrutura do carro. O processo combina centenas de etapas de fabricação em uma só, economizando em componentes, peso, custo e tempo.

A Xiaomi também teve que inovar. O alumínio líquido que é injetado na máquina de fundição tem que ser de uma certa variedade que consiga suportar uma quantidade extraordinária de pressão. A Xiaomi teve que criar seu próprio material, desenvolvendo um programa de inteligência artificial que usa um método conhecido como aprendizado profundo para simular como diferentes materiais se comportariam quando colocados na máquina de fundição, disse Ma.

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Velocidade chinesa

A Xiaomi se juntou à Beijing Automotive Group para iniciar seu projeto de fábrica usando a licença de fabricação de carros da empresa estatal. A partir daí, a Xiaomi levou meio ano para projetar a fábrica e mais 15 meses para construí-la, com o restante do período de três anos para o lançamento ocupado com aprovações, controle de qualidade e padrões.

A empresa só começou a considerar seriamente entrar no setor automotivo depois que o governo dos EUA a colocou na lista de vetos em janeiro de 2021 pelo que disse serem laços com os militares da China, proibindo os americanos de investir na Xiaomi, disse Lei à CCTV. (Em maio de 2021, Washington concordou em remover a empresa da lista.)

No dia do anúncio da lista de vetos, Lei se lembra de ter reunido membros do conselho para uma reunião de emergência, temendo que a Xiaomi pudesse em breve perder o acesso a componentes americanos, não conseguindo mais fabricar smartphones. Em suma, disse Lei, a Xiaomi precisava encontrar novas maneiras de ganhar dinheiro.

Em março de 2021, a Xiaomi declarou sua intenção de se juntar às fileiras dos fabricantes chineses de veículos elétricos e se comprometeu a investir US$ 10 bilhões na próxima década.

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De um modelo à produção em massa

A entrada da Xiaomi colocou-a no grupo das dez maiores estreantes em veículos elétricos na China e intensifica uma prolongada guerra de preços no mercado de veículos elétricos do país, onde mais de cem marcas disputam uma fatia do maior mercado automotivo do mundo — muitas delas não lucrativas.

Lei espera que apenas cinco a oito empresas sobrevivam e disse que a Xiaomi está atualmente vendendo com prejuízo. Para obter lucro, seria preciso produzir de 300 mil a 400 mil SU7 a cada ano, disse ele à CCTV.

A Xiaomi precisa aumentar rapidamente a produção para atender à demanda. Os clientes que encomendaram o carro no final de abril terão que esperar de 40 a 50 semanas para a entrega.

Há relatos na mídia chinesa de que o carro se envolveu em pequenos acidentes e um SU7 quebrou logo após a entrega. A empresa não respondeu a pedidos de comentários sobre essas matérias.

Na semana passada, os EUA aumentaram as tarifas sobre veículos elétricos chineses para cerca de 100%. A Xiaomi disse que se concentrará no mercado da China nos próximos três anos. A empresa não disponibilizou Lei para entrevista.

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Conheça seu cliente

À medida que o hardware para veículos elétricos se torna mais simples, o que determina cada vez mais o sucesso na China são o software e os recursos de um carro, garantem os executivos.

Para isso, a Xiaomi poderia contar com sua experiência interna em produtos e gadgets domésticos. A empresa está intimamente familiarizada com as preferências de estilo de vida dos clientes e aproveitou essas informações para o desenvolvimento de seus produtos, disse Tu Le, que divide seu tempo entre a China e os EUA e é diretor da empresa de pesquisa do setor Sino Auto Insights.

Quando Lei mostrou o SU7 para Wang da BYD, disse que desde o início a Xiaomi passou muito tempo tentando tornar o carro atraente para o público feminino. “Descobrimos quem dá as cartas”, disse Lei, de acordo com as imagens do vídeo, explicando que geralmente eram as mulheres que tomavam a decisão final de compra.

Uma característica particularmente popular entre as clientes do sexo feminino, disse ele, é a proteção solar do teto de vidro do carro. A Xiaomi explicou que o vidro colorido fortificado mantém o carro fresco ao sol e bloqueia os raios UV — uma característica apreciada por mulheres chinesas ansiosas para proteger sua pele do sol.

O painel do SU7 também pode se conectar ao ecossistema de software mais amplo da Xiaomi, mostrando a tela do celular Xiaomi do motorista e permitindo que qualquer pessoa com outros dispositivos Xiaomi os controle através do carro. 

“Nesse sentido, o SU7 parece mais um gadget no mundo Xiaomi”, disse Le, da Sino Auto Insights.

No início deste ano, a Apple encerrou seu esforço de anos para criar seu próprio veículo elétrico, assustada com a crescente dificuldade que a empresa enfrentou ao gastar bilhões tentando capturar ou exceder as capacidades das montadoras existentes.

Ao saber da saída da Apple, Lei disse que instruiu os funcionários a garantir que o SU7 funcionasse com o software proprietário da Apple, o CarPlay, que exibe telas do iPhone nos painéis dos carros, disse ele à CCTV.

Ma Xiaoyun, estudante na cidade de Tianjin, no norte da China, disse que comprou um telefone Xiaomi, além do carro, apenas para que pudesse experimentar a integração perfeita com seus dispositivos domésticos, como seu filtro de água e aspirador robô.  

Mas o que mais agrada Ma, de 21 anos, é a aceleração do carro, anunciada como 0 a 100 quilômetros por hora em 2,78 segundos — um ritmo de aceleração que lembra algumas versões do Porsche Taycan, que custa pelo menos quatro vezes mais que o SU7. “É muita vantagem pelo dinheiro gasto”, disse.

Escreva para Sha Hua em [email protected] e Yoko Kubota em [email protected]

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