As linhas gerais do arcabouço fiscal proposto pelo governo Lula foram, inicialmente, bem recebidas pelo mercado, mas, após a apresentação da íntegra do texto na terça-feira (18), especialistas passaram a apontar preocupações sobre a quantidade de exceções à regra fiscal e as receitas necessárias para o governo fechar as contas. Outros pontos também são alvos de questionamento, como incertezas em relação ao aumento de arrecadação.
A regra proposta prevê limitar o crescimento dos gastos da União a 70% da receita do ano anterior. Com isso, o aumento das despesas fica sujeito ao crescimento da arrecadação. Se for aprovado pelo Congresso, o novo arcabouço fiscal vai substituir o teto de gastos, que limita as despesas públicas à variação da inflação.
A proposta também contempla um compromisso de trajetória de resultado primário até 2026, com meta e banda de variação tolerável. O objetivo é zerar o déficit primário em 2024 e passar a registrar superávit nos anos seguintes (ou seja, receitas maiores que as despesas).
Principais críticas
Entre os principais pontos do texto que foram alvo de críticas após a entrega ao Congresso, especialistas comentam o dispositivo usado em caso de descumprimento da meta de resultado das contas. Um dos que questionam é Luciano Costa, economista-chefe e sócio da Monte Bravo Investimentos, que vê com preocupação “a questão da punição de quando se descumpre a meta não ser tão rígida”.
Isso porque, se o resultado do governo vier abaixo da tolerância da meta fiscal, a regra obriga uma redução do crescimento de despesas para 50% do crescimento da receita no exercício seguinte, em vez de 70%.
Bruno Mori, economista e sócio fundador da Sarfin, concorda que esse ponto é problemático, e comenta que, “em caso de descumprimento, sobra uma brecha muito grande para que o governo siga sendo negligente com relação à sustentabilidade das contas”.
Outros pontos também são vistos como alerta. Para Rodrigo Correa, estrategista chefe e sócio da Nomos, o detalhe mais “problemático” é que, pela regra, as despesas terão crescimento real sempre entre o intervalo de 0,6% a 2,5%.
“Esse item é o mais problemático porque, mesmo em anos de queda da arrecadação, estaremos com o pé no acelerador de gastos do governo, que crescem além da inflação em 0,6%. Isso potencialmente, em uma recessão grave, piorará o equilíbrio orçamentário e nos fará demorar muito mais tempo para voltar ao equilíbrio, aumentando em tais anos o endividamento do país.”
Rodrigo Correa, estrategista chefe e sócio da Nomos
De onde vão vir as receitas?
A fonte do aumento de receitas é uma das maiores incertezas dos especialistas diante do novo arcabouço fiscal. Parte das ações foi anunciada pelo ministro Fernando Haddad, mas ainda depende de formalização, como a taxação de apostas esportivas e a restrição de benefício fiscal do Imposto de Renda de empresas.
Outra medida que chegou a ser discutida foi a que fecharia o cerco a sites de e-commerce ao acabar com a isenção para importações de até US$ 50 vindas. Mas, em meio à repercussão negativa, o governo recuou e anunciou ter desistido da mudança.
Nesse cenário, as incertezas sobre como se dará o aumento de receitas geram dúvidas sobre a viabilidade do cumprimento das metas propostas pelo novo arcabouço fiscal.
“Os níveis de inflação projetados ainda próximo da banda superior do regime de metas de inflação, nos anos subsequentes, podem ser favoráveis para a arrecadação, mas ainda existe a dúvida sobre a criação de receitas para cumprir com os R$ 196 bilhões em despesas esperadas e zerar o déficit primário”
Ariane Benedito, economista da Esh Capital
Mori, da Sarfin, complementa que “esse arcabouço conta com aumento de arrecadação para que as contas fechem, o que não é garantia ou realidade provável, dada a desaceleração econômica”.
As exceções à regra
Assim como no teto de gastos, o novo arcabouço terá exceções à regra das despesas. A lista tem 13 tipos de despesas que não serão contabilizadas nos limites anuais. O número foi considerado alto por especialistas. “O principal ponto de atenção é o grande número de exceções que foram criadas”, opina Mori.
Entre as exceções estão as transferências aos fundos de saúde dos estados, do Distrito Federal e dos municípios na forma de assistência financeira para cumprimento do piso salarial da enfermagem.
Também não entram na conta “as despesas com projetos socioambientais ou relativos às mudanças climáticas custeadas com recursos de doações, e as despesas com projetos custeados com recursos decorrentes de acordos judiciais ou extrajudiciais firmados em decorrência de desastres ambientais”, segundo o texto.
Outra exceção são as despesas das universidades públicas federais e despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições, entre outras.
Costa, da Monte Bravo, diz que uma das exceções mais preocupantes é “com relação à capitalização das empresas estatais”, pois isso “gera uma certa preocupação de que o governo possa fazer capitalização e, com isso, aumentar o gasto além do que estar na regra. E isso, teoricamente, não tem restrição”.
De forma similar ao teto, a capitalização de estatais ficará fora da regra, mas com uma limitação. Serão beneficiados apenas aportes a estatais não financeiras e não dependentes de recursos do Tesouro Nacional. Uma eventual capitalização do BNDES, por exemplo, seria contabilizada.
Ainda no campo das preocupações com despesas e quais entram ou não na limitação, Benedito, da Esh Capital, acredita que “o que pode dificultar o andamento mais acelerado da aprovação no Congresso é o enquadramento das despesas discricionárias dentro da regra”.
“O texto traz hoje muitas dessas despesas que atualmente estão dentro do teto de gastos, e que a nova regra não irá abranger, colocando em dúvida qual será a real totalidade das despesas primárias”, pontua a especialista.
Arcabouço fiscal: é positivo ou negativo?
Ainda não se sabe qual será o desenho final da regra, já que isso depende da tramitação pelo Congresso. Mas, em linhas gerais, especialistas divergem sobre seus possíveis efeitos para as contas públicas.
Costa, da Monte Bravo, diz que “o arcabouço é positivo no sentido de considerar que, com essa regra, a gente tem uma limitação das despesas em relação ao crescimento das receitas”. “Isso gera uma percepção de que, ao longo do tempo, o governo está buscando uma trajetória de ajuste fiscal, um superávit primário ao longo dos próximos anos”, comenta.
Por sua vez, Mori, da Sarfin, afirma: “de maneira geral, esse arcabouço, como foi apresentado, eu vejo como sendo mais negativo do que positivo”.
Correa, da Nomos, pondera que “há de se louvar a iniciativa e velocidade do governo em apresentar e entregar tal proposta. Agora é com o Congresso.”
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