Na história da humanidade, o surgimento da moeda em diversas civilizações foi muitas vezes simultâneo ao surgimento dos serviços financeiros básicos, como os bancos, por exemplo.
E não poderia ser diferente: a partir do momento em que nós decidimos indexar nossas riquezas em moedas sonantes, a guarda de toda essa riqueza em locais mais seguros que nossas casas parecia uma condição sine qua non para que o sistema monetário desse certo.
Assim, o surgimento dos intermediários financeiros foi um processo quase natural, causado principalmente pela falta de confiança que temos uns nos outros enquanto sociedade.
É claro que, com o passar do tempo, os agentes financeiros deixaram de ser simples depositários de dinheiro, passando a emitir cédulas de depósito, fazendo empréstimos e auxiliando em toda a gama de serviços que o cidadão médio precisa. Isso porque, apesar de ser possível fazer tudo isso entre pessoas (ex: pegar dinheiro emprestado), esses operadores possuem uma estrutura de órgãos normativos e entidades supervisoras que garantem mais confiabilidade às operações e, por consequência, aos usuários dos serviços.
Ocorre que esse sistema inteiro criado com base na crise de confiança entre as pessoas é composto por diversos intermediários que, é claro, cobram por seus serviços. E esses serviços por vezes apenas se destinam a garantir que haja um terceiro de confiança das relações entre pessoas, não agregando efetivo valor e aumentando consideravelmente os custos de transação.
Na era em que vivemos, dispomos de uma abundância tecnológica, com acesso à internet em praticamente todas as partes do mundo, smartphones, computadores, etc.
É claro que o sistema financeiro tradicional foi rápido em adaptar seus serviços a toda tecnologia disponível: aplicativos de finanças, sistemas de cashback, bancos digitais e o movimento de open finance vêm crescendo exponencialmente nos últimos anos.
Mas os operadores desse milenar sistema financeiro ainda estão muito confortáveis em continuar a prestação de velhos serviços apenas em novos formatos. Falta eficiência, transparência e, especialmente, a eliminação de taxas para aqueles que atuam como meros intermediários de transações.
E apenas uma verdadeira revolução poderia resultar na quebra de paradigmas no que diz respeito a esses terceiros de confiança mais conhecidos do mundo. O nome da tecnologia que permite que isso seja possível é blockchain; o nome da aplicação é smart contract; o nome do movimento é DeFi.
Os contratos inteligentes
Os contratos fazem parte do cotidiano das pessoas desde de os primórdios da sociedade. Acordos são feitos, negócios fechados e inúmeras atividades giram e são dependentes deles, que nada mais são do que a formalização da vontade de duas ou mais partes.
Ocorre que, para garantir a execução de um contrato tradicional, é necessário um terceiro de confiança: seja ele um banco, que poderá emitir algum tipo de garantia a ser executada em caso de inadimplência, seja o próprio Poder Judiciário.
Isso porque nos contratos tradicionais é impossível garantir que aquilo que foi designado será de fato cumprido. Por isso, para aumentar o grau de segurança quanto à executoriedade, as partes podem recorrer a esses terceiros, que cobram (caro) para fornecer garantias adicionais ao negócio.
É exatamente esse o problema que os contratos inteligentes resolvem.
Com eles, a autoexecutoriedade está pré-estabelecida, pois eles nada mais são do que um código de computador pré-programado para que, uma vez preenchidas as condições, as vontades das partes sejam executadas automaticamente.
Um exemplo prático e fácil de compreender do que se trata essa autoexecutoriedade são aquelas máquinas de refrigerante e outros produtos, que geralmente encontramos em postos de gasolina e estações de metrô.
São máquinas com computadores devidamente programados através de linguagem de programação, 100% orientado com o objetivo de executar uma ação, por exemplo: receber uma nota ou moeda de acordo com o valor do produto, aguardar a escolha do mesmo e logo após, ele será enviado ao local indicado para retirada.
Nesse caso, existe um acordo de vontades (e, portanto, um contrato), em que determinada pessoa decide comprar uma Coca-Cola por US$ 2 e a máquina decide vender essa mesma Coca-Cola por US$ 2. Com o requisito pelo contrato preenchido (pagamento de US$ 2), a máquina automaticamente libera a Coca-Cola ao comprador. Automaticamente, sem uma atendente de balcão (intermediário) que o faça – ou seja, é um contrato auto executável.
Essa característica é chave para entender os contratos inteligentes que, por terem a característica de serem autoexecutáveis, podem resultar na eliminação dos intermediários do negócio que agregam pouco ou quase nada ao serviço prestado, reduzindo assim os custos de transação.
Mas o que é DeFi, afinal de contas?
Quando pensamos no sistema financeiro tradicional, conseguimos vislumbrar incontáveis intermediários de serviços.
Pense em uma loja que vende Coca-Cola. É exatamente o mesmo refrigerante vendido em uma máquina. Ou seja, a loja agrega pouco ou quase nada ao produto final, mas é remunerada e isso encarece o preço do produto/serviço. E é justamente com essas contrapartes que os chamados contratos inteligentes pretendem acabar.
Nesse contexto evolutivo, considerando que, com os smart contracts, existe tecnologia suficiente para revolucionar os serviços financeiros, vimos nascer um novo movimento.
Seu nome é DeFi (sigla para finanças descentralizadas), se refere a um ecossistema de aplicações financeiras que são construídas no topo de redes blockchain.
Mais especificamente, o termo DeFi pode ser entendido como um movimento que visa criar um ecossistema de serviços financeiros de código aberto, livre de permissões e transparente, disponível para todos e operando sem nenhuma autoridade central.
Os usuários mantêm controle total sobre seus ativos e interagem com esse ecossistema por meio de aplicações descentralizadas (chamadas de DApps), no formato peer-to-peer (P2P).
A explosão do DeFi marcou 2020 e ficou conhecida como DeFi Summer. O protocolo que iniciou as operações se chama Compound, lançado em maio de 2020, e por meio dele alguns termos como programa de liquidez, empréstimos e yield farming ficaram conhecidos.
Todas essas práticas dentro do ecossistema DeFi proporcionaram uma nova forma de ganhos com criptoativos, além de apenas deixar os tokens on hold aguardando futuras valorizações.
A título de exemplo, segue uma breve relação de projetos que têm como objetivo serem melhores do que as plataformas financeiras que hoje são usadas no mercado tradicional: AAVE, MakerDAO, Compoud, Synthetix, UniSwap, yearn.finance, entre outros.
Existem inúmeras iniciativas, acima ficou apenas um exemplo prático de projetos que replicam exchanges, bancos, stablecoins, seguros, investimentos e diversas outras aplicações financeiras tradicionais.
Como DeFi vem reinventando serviços financeiros
O principal benefício do DeFi é o fácil acesso a serviços financeiros, especialmente para aqueles que estão isolados do sistema financeiro atual ou querem fugir de seus altos custos. Outra potencial vantagem do DeFi é a estrutura modular em que ele é construído – aplicações interoperáveis DeFi em blockchains públicas podem criar mercados, produtos e serviços financeiros totalmente novos.
Vamos a um exemplo prático de como uma aplicação DeFi funciona: na plataforma Compound, podemos rapidamente de maneira segura e intuitiva obter uma carteira de criptomoedas, nos conectar a este protocolo e obter renda passiva que pode nos proporcionar retornos financeiros entre 3% a 14% ao ano.
Naturalmente, nesse processo não é utilizado nenhum intermediário para executar essa ação, como um banco convencional, por exemplo, onde antes de iniciar qualquer atividade financeira temos que preencher diversos requisitos básicos e verificações. Com efeito, é possível contar com retornos que facilmente superam os números convencionais, já que um investimento em uma savings account pode gerar, quando muito, 3% ao ano.
E como tudo isso é possível?
No caso de empréstimos, por exemplo, o contrato inteligente une aqueles que querem emprestar dinheiro com outros que desejam ter dinheiro emprestado, proporcionando uma rentabilidade maior do que investimentos tradicionais aos borrowers e juros menores aos lenders. Simples assim. Sem intermediários nem burocracias. Alguma dúvida do quão revolucionário isso é?
O que vem pela frente
Uma vantagem significativa de um ecossistema aberto é a facilidade de acesso para indivíduos que, de outra forma, não teriam acesso a nenhum serviço financeiro, similar ao que vemos hoje com os sistemas bancários tradicionais. Essa é a primeira revolução que o DeFi promete: democratizar o acesso aos serviços financeiros, incluindo aqueles que de outra forma não poderiam contar com eles.
Como ainda estamos falando de uma tecnologia muito nova, diversas melhorias precisam ser feitas e existem alguns desafios que precisam ser superados, como desempenho, risco de erro do usuário e melhorias na experiência do usuário, de forma a ficar mais intuitiva.
De toda forma, olhando para o futuro vemos uma demanda institucional crescente e novos protocolos com objetivos de criar serviços financeiros disruptivos surgindo e sendo testados: já existem protocolos que funcionam basicamente como uma seguradora, por exemplo o projeto chamado Nexus Mutal, e projetos focados em criar um score de crédito e soluções para empréstimos sem colateral, em blockchain.
O ecossistema de DeFi está evoluindo e se expandindo rapidamente para recriar a gama de serviços financeiros tradicionais no formato de tecnologias descentralizadas, propondo alternativas mais baratas, rápidas e com maior abrangência.
Além disso, novos produtos nunca antes disponibilizados prometem revolucionar os serviços financeiros e colocar em xeque as altas taxas e burocracias das empresas tradicionais do mercado financeiro.
No futuro, encontrar empréstimos a juros baixíssimos e a contratação de seguros para riscos pontuais ou por períodos reduzidíssimos de tempo será não apenas possível, mas disponível para qualquer pessoa. Isso porque, por serem permitionless, as tecnologias em blockchain prometem democratizar o acesso a soluções, sendo incrivelmente inclusivas.
Por isso, não se engane: apesar de já ter havido um DeFi summer em 2020, esse é um mercado que ainda está na sua Pré-História, prometendo ser a grande revolução dos serviços financeiros no futuro.
*Helena Margarido é especialista em blockchain e moedas digitais e sócia da Monett |
As informações desta coluna são de inteira responsabilidade do autor e não do InvestNews e das instituições com as quais ele possui ligação.
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