“Moça, eu sei que você não tem essa resposta, mas eu queria perguntar: quando essa crise vai acabar e nossas vidas vão voltar ao normal?”. Foi assim que começou a conversa com a diarista Eliane Pereira de Luana Souza, de 44 anos, moradora do Capão Redondo, em São Paulo.
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Eliane mora com o marido Fabio Alves Souza, de 43 anos, e seus dois filhos adolescentes de 11 e 17 anos. Sua renda depende diretamente do trabalho com faxina. Ela cobra R$ 170 por diária, sem garantia de uma renda estável. Desde que a quarentena começou, ela ficou sem trabalho. “Desde 19 de março, eu fiquei sem trabalhar. As patroas falam que é melhor eu ficar em casa por causa do vírus. Mas se alguém me falasse: Venha trabalhar! Eu iria, porque não tenho como me manter”.
O marido de Eliane também ficou sem emprego em janeiro. Fabio trabalha consertando caixa de água e desentupindo canos. Era registrado, mas por falta de demanda, o patrão o dispensou. O jeito foi abrir um MEI e começar a fazer bicos durante a quarentena. A renda desta família é de R$ 2400 mensais.
Com o anúncio do auxílio emergencial (coronavoucher) de R$ 600, Eliane e o marido fizeram o cadastro no aplicativo “Caixa Auxílio Emergencial”, mas não tiveram sucesso. Com um celular Motorola, que ela define como bem “antigo”, a diarista fez o cadastro no dia 8 de abril, mas não foi aprovado. “Apareceu que eu tinha esquecido de preencher se era feminino ou masculino. Como não entendo bem de celular, pedi para meu filho ajudar, e ainda está em análise”. Seu marido também se cadastrou no dia 11 de abril e, apesar de ter uma conta na Caixa Econômica, ainda não obteve resposta.
Como a aprovação não chega, as contas atrasam. O aluguel da família, por exemplo, venceu no dia 1º de abril. As contas básicas estão atrasadas há dois meses. “O dinheiro que meu marido ganha com bico estamos usando para comer. Temos o básico, por exemplo, salsicha”, conta. Como Eliane faz aniversário em maio, ela só terá acesso ao dinheiro em alguma agência da Caixa apenas dia 29.
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Enquanto a família sobrevive comendo salsicha, Carlos Henrique Mendes, morador de rua há 1 ano e meio, vive de caridade do padre Julio Lancelloti, que tem doado verbas para algumas pessoas em situação de vulnerabilidade. Com a ajuda de duas advogadas, a Pastoral de São Paulo, que Lancelloti coordena, organizou um atendimento jurídico para ajudar as pessoas de rua a receber o coronavoucher.
Carlos tem inscrição no CadÚnico (cadastro de programas sociais do governo). Ele se inscreveu para o Bolsa Família há 9 meses e foi aprovado, porém nunca chegou a receber o auxílio. Há 1 semana, procurou a assistência jurídica da Pastoral e se inscreveu no auxílio emergencial, que foi aprovado. Como ele não tem celular, usou emprestado o da advogada Juliana Hashimoto para entrar no Caixa Tem, mas o aplicativo aparecia como desabilitado e esperando uma nova versão.
Nascido em janeiro, ele terá que esperar até dia 27 de abril para fazer o saque na Caixa Econômica. “Eles deveriam facilitar a situação, porque tem morador de rua que nem documento tem e na pandemia a gente não pode nem vender uma bala no semáforo”, reclama Carlos. Para sua sorte, ele tem RG e CPF, documentos necessários para o saque.
Até o momento, a Pastoral auxiliou cerca de 400 moradores de rua, mas poucos conseguiram receber o pagamento de R$ 600. Para Juliana, advogada da Pastoral, a preocupação principal são os moradores de rua que nem documentação têm, ou estão com os CPFs irregulares. “Eles não vão conseguir retirar o dinheiro na boca do caixa. Estamos tentando interlocução com a Comissão de Direitos Humanos da OAB e a Caixa Econômica para resolver este problema”, comenta.
Outros como a Kênia de Sousa Lima (19), moradora de São Paulo, se viram como podem. Estudante bolsista, perdeu o emprego de atendente e hoje ganha a vida costurando máscaras. Com uma renda mensal de R$ 1 mil, ela teve o auxílio aprovado desde o dia 13 de abril, mas também não teve sucesso com o aplicativo da Caixa. “Sempre que eu tentava acessar, a página dava erro”.
Kênia chegou a ir até uma agência da Caixa, mas os atendentes pediram para ela ligar na central telefônica. Não deu certo e as contas continuam atrasadas. Como faz aniversário em maio, terá que esperar até dia 29 para ver o dinheiro.
O olhar tecnológico
Fernando Alcazar, diretor de TI da Seteco e Asplan Sistemas, explica que quando se lança um novo aplicativo, o recomendável é fazer testes de acessibilidade antes para evitar problemas com os usuários. Em vista que a Caixa Econômica quis atender rapidamente a demanda do governo, lançou o aplicativo provavelmente pulando etapas, aumentando assim o índice de reclamações. “Não da para culpar a Apple dos erros do Caixa Tem, mas a Caixa precisa urgentemente juntar seu time de TI, validar estes erros e liberar uma nova versão”, afirma.
Enquanto isso não ocorre, ele acredita que os erros continuarão ocorrendo. Com superlotação, a Caixa estima que pelos menos 200 mil usuários simultâneos acessam o app durante 10 minutos. Segundo Alcazar, quanto maior o número de usuários, maior deve ser o desempenho do servidor e a arquitetura do software. “Se eu tenho um usuário, precisarei apenas de um recurso, se eu tenho 30 milhões de usuários vou precisar pelo menos de 500 mil recursos. Quanto maior a demanda, preciso otimizar o processamento, uso dos links, e para isso preciso de um aplicativo que não seja simples”, explica. Para o especialista em TI, o governo não tem aparato tecnológico suficiente para atender as demandas dos cidadãos. Por este motivo, o Caixa Tem nasceu como um app simples que não aguenta superlotação.
Mario Toews, sócio da DataLege Consultoria, aponta que a solução para o Caixa Tem é complexa. Para o aplicativo conseguir melhorar será necessário ampliar a capacidade do servidor, memória e processamento, tudo isso ainda sem perder as questões de segurança. “Outra saída seria fazer uma escala de acessos para desafogar o aplicativo”, explica. Toews afirma que um aplicativo pode ser atualizado em questão de horas caso se tenha os recursos disponíveis, como um servidor e capacidade financeira. Mas para questões técnicas ou de software, a transformação pode levar dias. “Será uma questão de tempo. Eles vão resolver algumas demandas e a fila vai liberando e melhorando o processamento”, conclui.
Para Alcazar, a saída será atualizar uma nova versão do Caixa Tem, melhorando as funcionalidades do aplicativo, a parte interna de transações e a interação com o banco de dados. “Isso não vai acontecer em uma única versão. Teremos várias versões liberadas daqui para frente”, comenta.
O olhar econômico
O economista Eduardo Giannetti da Fonseca comemora que o auxílio emergencial foi elevado de R$ 200 para R$ 600. Para ele, o maior desafio do Brasil durante a distribuição do auxílio emergencial será lidar com a desigualdade. “Temos quase 50 milhões de brasileiros que não têm recurso nenhum para atravessar a quarentena. Não há situação regular de emprego. Eles são os excluídos da vida organizada, alguns nem CPF têm, o que os torna frágeis”, explica.
Giannetti acredita que a pandemia da Covid-19 (coronavírus) é uma grande lição para o Brasil ter medidas de inclusão no futuro. Sobre o auxílio emergencial, ele acredita que a efetividade muda de região para região. “Você compra com R$ 600 mais alimentos no interior de Minas Gerais do que na periferia de São Paulo ou Rio de Janeiro”. Além da desigualdade do custo de vida, Giannetti lembra de muitos vulneráveis brasileiros, como moradores de rua, onde o governo não tem como chegar.
“Nós ignorávamos que eles existiam e agora estão aparecendo”, diz. Por este motivo, o economista recomenda que as soluções de auxílio econômico para a sociedade devem ser cada vez mais descentralizadas e feitaspelos próprios estados, que conhecem de perto os dramas de suas regiões.
Giannetti também sugere a atuação do Banco do Brasil no repasse de auxílios. “Se a Caixa está com problemas, eles que são um banco público poderiam entrar em campo e ajudar com a agilidade nos pagamentos”, conclui.
Para Walter Franco, economista do Ibmec, infelizmente é preciso ter paciência para aturar os atrasos nos pagamentos do auxílio emergencial. “Temos milhões de pessoas desempregadas e o fluxo é grande. Não podemos culpar apenas o sistema. Ainda é abril e acredito que ninguém será excluído do auxílio”, diz. Franco defende que o coronavoucher é apenas um estímulo de renda para a sociedade, mas não é a saída para resolver os problemas de pobreza no Brasil. “Acho que precisamos ficar de olho na retomada da economia antes de aumentar o número de beneficiários do auxílio, porque tudo pode mudar”, acrescenta.
Resposta da Caixa
A reportagem do InvestNews entrou em contato com a Caixa Econômica Federal pedindo um posicionamento sobre os problemas com o Caixa Tem e o pagamento do auxílio emergencial. A assessoria de imprensa do banco alegou que o Caixa Tem está disponível exclusivamente para clientes da Poupança Social Digital, mas o aplicativo foi baixado por mais de 37 milhões de pessoas, 60% delas não fazem parte do público-alvo.
O banco também afirmou ter problemas de superlotação. No dia 22 de abril, por exemplo, mais de 2,2 milhões de usuários acessaram o aplicativo e foram realizadas 7 milhões de transações entre consultas e movimentações. Até o momento, o banco registrou mais de 200 mil usuários fazendo acessos simultâneos no aplicativo. “O banco trabalha continuamente para aumentar a capacidade de acessos simultâneos. Atualmente estamos em 200 mil conexões simultâneas e estamos trabalhando para ampliar para 500 mil conexões”, explica a Caixa.
Sobre os moradores de rua, o banco informa que segundo o decreto 10.316 de 07/04/2020, que regulamenta o Auxílio Emergencial, para receber o benefício é preciso estar cadastrado no CadÚnico até o dia 20 de março ou se cadastrar por meio da plataforma digital. A instituição não respondeu sobre a dificuldade da população de rua de acesso a internet ou celulares.
Enquanto o departamento de TI da Caixa resolve a capacidade do aplicativo, permanecem vigentes as datas de saque em agências ou lotéricas a partir da segunda-feira (27). Confira o calendário:
- 27 de abril – nascidos em janeiro e fevereiro
- 28 de abril – nascidos em março e abril
- 29 de abril – nascidos em maio e junho
- 30 de abril – nascidos julho e agosto
- 04 de maio – nascidos em setembro e outubro
- 05 de maio – nascidos em novembro e dezembro