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Economia

É um erro excluir o Bolsa Família do teto de gastos, diz Maílson da Nóbrega

Em entrevista, ex-ministro da Fazenda também afirmou que o ‘Brasil vai pro brejo’ se não reduzir despesas do Orçamento.

O economista e ex-ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, disse que os R$ 600 do Bolsa Família prometidos pelo próximo governo devem ser assegurados à população mais pobre, mas que é um erro excluir o programa social do teto de gastos. A equipe do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), negocia a PEC do teto de gastos no Congresso, e quer deixar o valor do Bolsa Família fora do teto.

Economista e ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega durante evento Crédito: Wikipédia/Wikimedia Commons

O senador Marcelo Castro protocolou a PEC nesta segunda-feira (28) no Senado, retirando o Bolsa Família do teto por quatro anos. Essa foi a principal mudança em relação ao anteprojeto apresentado há quase duas semanas pelo vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin. O impacto fiscal para 2023 é de até R$ 198 bilhões.

Em entrevista exclusiva ao InvestNews*, Maílson ressaltou que não há contradição entre responsabilidade fiscal e social, e que ambas se complementam.

O economista afirmou, no entanto, que o país está “em grave desequilíbrio fiscal” e que é preciso controlar gastos desnecessários, além da rigidez orçamentária, que esse ano chega a 93% dos gastos do governo federal. Ele também disse que o desafio de Lula é construir um regime fiscal responsável. Veja a seguir a entrevista:

IN$ – O teto de gastos é realmente relevante para a política fiscal do país?

Maílson: É, sim, relevante. O país está em grave desequilíbrio fiscal, o teto de gastos foi violado várias vezes pelo governo Bolsonaro, a ideia foi desmoralizada, mas é válida ainda. Você não tem, a meu ver, como construir uma âncora fiscal sem o elemento de controle de gastos. Não é como o Lula diz que as pessoas têm que confiar nele porque ele é responsável. Não é assim que o mundo funciona, o mundo passou a dar certo porque passou a funcionar sob regras, você tem regras.

No país em crise você tem que ter uma norma que promova o controle de gastos para evitar uma trajetória explosiva da relação entre a dívida e o PIB, que é o principal indicador de solvência do setor público. Precisa da regra para proteger a sociedade da irresponsabilidade fiscal e precisa de uma regra para proteger o governante das pressões.

Acho que o Lula deveria parar de dizer essa tolice e trabalhar na construção de uma verdadeira âncora fiscal, porque o teto de gastos foi uma medida extrema, heróica, para chamar a sociedade para a reflexão da trajetória da dívida, no sentido de que é chegada a hora de dar um basta na expansão desgovernada do gasto público.

IN$ – Qual foi o crescimento do gasto público?

Maílson: O gasto público cresceu em média, desde a Constituição de 1988, 6% ao ano acima da inflação, enquanto o PIB crescia em média 2%. Não precisa ser economista, nem matemático, nem estatístico, nem engenheiro e nem jornalista para saber que isso não pode dar certo.

IN$ – A PEC do teto de gastos é um equívoco?

Maílson: Acho que é um equívoco a PEC, porque é uma compreensão dos mercados que diante do agravamento da pobreza, da fome, o próximo governo, que é do Lula, tem que ter uma certa licença limitada para realizar gastos particularmente de natureza social por um período de tempo, mas isso, as pessoas [Pérsio Arida e equipe de transição] que sugeriram essa ideia, elas imaginaram que a medida teria uma contrapartida, não seria um acréscimo ao teto de gastos senão você voltaria a ter uma trajetória explosiva da relação dívida/PIB.

A ideia é que houvesse uma contrapartida da redução de gastos com o futuro, que o governo reunisse as opções políticas para discutir o gasto obrigatório. O país também não dará certo se continuar com essa rigidez orçamentária. Esse ano, 93% dos gastos do governo federal têm destinação obrigatória. No mundo inteiro, essa rigidez é muito menor, em torno de 40 a 60%, ou seja, os governos mantêm uma margem em torno de metade do orçamento para fazer políticas públicas, pró crescimento, para redução da desigualdade e da pobreza. O país não pode dar certo se ele tem só 7%  para investir em ciência, tecnologia, infraestrutura, programas sociais e assim por diante.

IN$ – Qual a alternativa para essa rigidez orçamentária do governo?

Maílson: Não tem alternativa, ou reduz os gastos obrigatórios ou o Brasil vai pro brejo. Como disse o Armínio Fraga, é insustentável manter uma situação em que a dívida volta a crescer e o governo só tem 7% e daqui só 5% de margem para fazer políticas públicas. E é nisso aí que o Lula pode dar errado, porque ele está pensando que basta ele chegar ao governo que vai ter dinheiro pra tudo.

O Lula deu certo porque no primeiro mandato ele foi responsável e deu seguimento a política econômica do Fernando Henrique, que foi uma herança bendita. E, ao mesmo tempo em um ciclo de commodities favorável.

Ele pegou um mandato dos céus, e agora vai pegar um mandato do inferno. A situação mundial está complicada, desacelerando, temos inflação nos países ricos que dá origem a um ciclo de alta de juros, não tem um ciclo de commodities porque a globalização está desacelerando, a China está crescendo menos. O desafio do Lula agora é construir um regime fiscal responsável que ataque essa rigidez do gasto, não tem alternativa, infelizmente.

IN$ – É um erro excluir o Bolsa Família do teto de gastos?

Maílson: É um erro por vários motivos. O teto de gastos não é uma experiência brasileira, ele foi adotado em vários países quando a situação fiscal e a trajetória da dívida pública se tornaram insustentáveis. Agora, o teto de gastos foi criado para exceções como terremotos, enchentes e incêndios, ou com gastos imprevisíveis, que o governo não tem como controlar, como por exemplo, precatórios, que a literatura chama de válvula de escape, para permitir que acomode situações como essas.

Agora, o Bolsa Família não é uma emergência e nem é uma coisa imprevisível, o Bolsa Família existe há pelo menos 20 anos, sabe quanto custa, sabe quantos são beneficiários. Eu acho que é um equívoco, a não ser que o teto de gastos seja uma licença temporária, de 1 a 2 anos [a entrevista foi feita quando a PEC ainda previa retirar o gasto por tempo indeterminado], que o governo assume o compromisso de fazer uma contrapartida como redução de gastos obrigatórios.

O Lula não está em 2003, o mundo é hostil ao Brasil, a tendência da economia mundial é de desaceleração, existiu o risco geopolítico, incluindo o risco de uma guerra nuclear. O Lula não saiu do palanque, ele continua prometendo mundos e fundos, ele tem que fazer cálculos, para isso tem uma equipe de transição, porque se ele não for bem-sucedido em atacar a questão fiscal, ele não será bem sucedido na terceira vez como presidente, porque a situação é insustentável.

Felizmente, o Brasil não corre o risco de virar uma Argentina, isso é uma bobagem, virar uma Venezuela é uma tolice maior ainda, muito menos virar um país comunista. O Brasil tem estruturas boas, sistema financeiro sólido, bem capitalizado e regulado, tem agronegócio e mineral bem competitivo, contas externas em ordem, tem tudo pra vencer a turbulência que houver. Mas, se essa turbulência for de tal modo que gera uma pendência explosiva na relação dívida/PIB aí eu acho que vamos passar maus momentos. Não é nenhuma catástrofe, mas vai sofrer muito.

IN$ – No momento, a relação dívida pública e PIB está em um patamar insustentável?

Maílson: Não, até porque não tem uma regra, vai mais do sentimento do mercado. A gente não pode fazer comparações internacionais. Aqui nós temos uma taxa baixa de poupança, Selic de 13,75%, podendo subir lá na frente senão for reduzido o problema fiscal. Há um estudo de dois professores de Harvard sobre 800 anos de endividamento e eles chegaram à conclusão que o sistema colapsa quando a relação dívida/PIB se aproxima de 90%.

O Brasil está caminhando pra isso. Se essa PEC for aprovada, em 2030, essa relação chegaria a 110% do PIB e, claro, colapsaria antes, pois os mercados fogem do risco. Quando o mercado fica nervoso, como o Lula diz, não é um bando de especuladores. São pessoas que têm a responsabilidade de gerir negócios, de zelar pela solidez das suas instituições financeiras e quando ela vê uma relação irresponsável que elevaria o déficit público, que se transforma em dívida.

IN$ – O governo do presidente Jair Bolsonaro furou o teto em R$ 795 bilhões em 4 anos. Por que o senhor acha que a PEC do Lula, que prevê R$ 198 bilhões por ano, preocupa tanto o mercado?

Maílson: Por duas razões: primeiro os furos do teto do Bolsonaro foram temporários, o auxílio emergencial acabou, e a proposta do PT é aumento de gasto permanente. Nós estamos falando em algo acima de R$ 600 bilhões que dá 6 ou 7% do PIB, o mercado tá fazendo essas contas.

IN$ – Se a PEC for aprovada com a proposta do PT de R$ 198 bilhões, o país corre correr o risco de dar um calote em sua dívida em curto prazo?

Maílson: Correr, corre. Não no curto prazo, mas depende da avaliação dos mercados. Se a proposta do Tasso Jereissati [for aprovada] acho que até muda de figura, acho que o mercado até pode absorver muito bem um aumento de gastos de R$ 80 bilhões desde que compensado com redução de gastos no futuro. O que não pode é como eles puseram, que é os R$ 200 bilhões de maneira permanente. Assim o mercado vai fugir do título público.   

IN$ – O presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, cogitou criar uma Medida Provisória (MP) caso a PEC não seja aprovada. O impacto de uma MP seria pior para o país?

Maílson: Eu acho que é a mesma coisa. Mas eu não sou jurista e imagino que seja discutível fazer isso por Medida Provisória porque seria um crédito extraordinário. E crédito extraordinário só se justifica em caso de emergência e gastos imprevisíveis, e o Bolsa Família não é uma coisa e nem outra.

IN$ – É possível ter responsabilidade fiscal e social ao mesmo tempo?

Maílson: Ninguém tem dúvida que a medida de assegurar os R$ 600 não tem como não fazer até porque você não tem como chegar na população mais pobre e dizer que agora vai receber R$ 405. O problema é como fazer. Não há contradição entre responsabilidade fiscal e a responsabilidade social, os dois são complementares e um não existe sem o outro.

IN$ – Como o rompimento do teto de gastos afeta a população?

Maílson: Vai ter queda de confiança, fuga de capitais, que significa depreciação cambial que impacta preços, que impacta a renda dos mais pobres.

IN$ – Se o senhor fosse o novo ministro da Fazenda, qual seria a primeira medida adotada?

Maílson: Eu buscaria convencer o presidente a votar um plano de mobilização da sociedade e da classe política em prol de uma reforma estrutural do orçamento e para atacar os gastos obrigatórios. Um plano para reduzi-lo no período razoável de tempo, pode estagnar e depois reduz.

IN$ – E quais os grandes desafios para o próximo governo?

Maílson: Acho que são dois os desafios básicos para o futuro do Brasil. O primeiro é o da produtividade, principal indicador de geração de riqueza de um país. O Brasil é prisioneiro da armadilha do baixo crescimento, ela hoje cresce em poucos setores, como o da agricultura. É preciso voltar a crescer, e voltar a crescer é gerar grande produtividade. Há um cardápio enorme de medidas no curto, médio e longo prazo.

No curto prazo, a Reforma da Tributação do Consumo, quer está praticamente pronta no Congresso, já passou por algumas comissões e tem apoio quase unânime dos estados, praticamente todos os municípios. Essa reforma vai eliminar cinco incidências tributárias, três da União (IPI, PIS e Confins), um dos estados (o ICMS, que é o pior de todos, e dos municípios (que é o ISS). Os estudos mostram que em um período de 15 anos essa reforma aumenta em 20% o potencial de crescimento do país. Depois você tem que melhorar a operação da logística mediante concessões em massa, de serviços e transportes rodoviário, ferroviário e fluvial, no médio prazo.

E no longo prazo, a educação. A qualidade da mão-de-obra é fator primordial para aumentar a produtividade do trabalho. O Brasil embora gaste em educação proporcionalmente mais do que os países ricos, nós gastamos 6,3% do PIB, eles gastam 5,8% do PIB, gastamos uma vez e meia os o que gasta a China, 4% do PIB, e a China está no topo da tecnologia digital. E, apesar de gastarmos mais do que todos eles, nós temos um péssima qualidade, uma lamentável qualidade de educação. Já aumentamos no aumento da escolaridade, mas a qualidade ainda deixa muito a desejar. É uma agenda de longo prazo, complexa e difícil porque ela não conta ainda com o consenso, apoio da sociedade.

*A entrevista foi realizada na [ultima sexta-feira (24), antes de a PEC ser protocolada no Senado.

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