Parar de trabalhar ainda jovem e viver dos próprios recursos. Não são poucos os que sonham em acumular um patrimônio que garanta a independência financeira. Mesmo assim, pode-se contar nos dedos quantos chegaram lá. Existe até um movimento conhecido como Fire (Financial Independence Retire Early), que prega um estilo de vida modesto focado na aposentadoria precoce — leia-se, até os 40 anos. O objetivo é economizar e poupar o máximo possível para usufruir dos recursos sem precisar de muito esforço. Mas quão factível é a conquista dessa liberdade?
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Na visão da superintendente de Educação de Investidores e Informações Técnicas da Anbima e conselheira da Planejar (Associação Brasileira de Planejadores Financeiros), Ana Leoni, a independência financeira é possível, mas este objetivo ficou mais desafiador. O primeiro obstáculo, segundo ela, é a mentalidade imediatista do brasileiro. “As pessoas investem mais para realizar objetivos concretos de curto prazo”, diz. E a prova está nas estatísticas. A terceira edição da pesquisa Raio X do Investidor Brasileiro, com dados de 2019, mostra que, quando se observa o motivo que leva as pessoas a investir, apenas 9% das pessoas pensam em usar os recursos pensando no futuro (a velhice ou aposentadoria).
Outra barreira foi a queda história da taxa básica de juros, hoje em 2% ao ano, que derrubou a rentabilidade das aplicações de renda fixa e tirou muita gente da “zona de conforto” para obter o retorno atrativo de um passado não tão distante. Além disso, o aumento da expectativa de vida do brasileiro tem obrigado as pessoas a repensar os planos para a aposentadoria. ” Buscar a independência financeira achando que aos 50 vai viver com os próprios recursos é uma ambição muito ousada. Muitas pessoas vão produzir renda por menos tempo do que vão usufruir”, afirma Ana Leoni.
Mas nem tudo está perdido. Se não há uma fórmula para alcançar a independência financeira, há sim caminhos para obter o que se pode chamar de “liberdade” ou “tranquilidade”, mas sempre com os “pés no chão”, defende a especialista. Em entrevista ao InvestNews, ela fala sobre os caminhos viáveis para a construção de um patrimônio e sobre a ressignificação do trabalho no atual contexto. Leia abaixo:
InvestNews — O que impede as pessoas de alcançar a independência financeira?
Ana Leoni — É possível, mas o desafio ficou maior. A pesquisa do Raio-X do Investidor da Anbima mostra que apenas 28% das pessoas confiam que os investimentos são um passaporte para a garantir a tranquilidade financeira. Quando se olha o motivo que leva as pessoas a investir, 35% querem comprar um imóvel, 17% querem ter dinheiro para alguma emergência e só 9% vão usar para a velhice ou aposentadoria. As pessoas investem mais para realizar objetivos concretos de curto prazo do que para conquistar a independência financeira. Quem compra um apartamento não tem liberdade financeira. Quem faz uma reserva de emergência, mesmo que significativa, também não. Promessas que vendem a ideia de ficar milionário rapidamente acabam frustrando. É preciso fazer uma série de concessões e a fórmula de gastar menos do que se ganha nunca foi tão válida.
InvestNews — A taxa de juros em 2% ao ano é um obstáculo para buscar viver de renda?
O dinheiro ficou mais escasso. Quando se investia a 15% ao ano, era outra coisa. O rentista, a pessoa que tinha dinheiro na poupança conseguia fazer um pé de meia, e hoje é bem mais difícil. Para conseguir viver de renda com uma taxa a 2% ao ano, o esforço é diferente. Ou você aumenta sua renda e busca outros investimentos ou você gasta menos. Essa mobilidade econômica que permite prosperar e viver dos próprios recursos está mais distante e as pessoas fazem pouco para chegar lá.
InvestNews — As pessoas estão vivendo mais, mas querem se aposentar cada vez mais cedo. Como fechar essa conta?
A maioria das pessoas pretende se aposentar entre 50 e 63 anos, quando a expectativa de vida no Brasil subiu para 70 a 74 anos. Uma pequena parcela enxerga os investimentos como garantia de tranquilidade financeira. Para a maioria, o dinheiro serve para concretizar objetivos imediatos e aquisições de bens. Se você começa a trabalhar aos 20 anos e quer se aposentar aos 50, terá que usufruir do que produziu por um período maior. O envelhecimento da população é um desafio que as pessoas ainda não se deram conta. O Brasil envelheceu antes de enriquecer. E vamos envelhecer muito mais. Uma projeção da ONU mostra que o Brasil terá 23% da população com mais de 65 anos em 2050. Só ficaremos atrás do Japão, Europa e China. O Brasil dará o maior salto do envelhecimento. O brasileiro terá que produzir renda por muito mais tempo. Se você se aposentar aos 50 anos e viver até os 90, o que vai fazer da sua vida social? Será uma questão de quais empregos essas pessoas terão e como será essa relação de trabalho. Talvez não sejam carreiras duradouras. Esses fatores deixam o desejo de independência financeira mais desafiador, mas acredito que é possível.
InvestNews — Se não existe uma fórmula para alcançar a liberdade financeira, quais os caminhos para chegar lá?
É preciso começar a fazer algo hoje. A pesquisa do Raio X mostra que apenas 29% das pessoas fizeram algum investimento no passado e 10% destinaram recursos para investimentos financeiros. Não é a aquisição de um apartamento, carro ou viagem que vai permitir isso. Precisamos convencer as pessoas que elas precisam guardar mais dinheiro. Países com a mesma renda per capita do Brasil têm taxa de poupança maior. É uma questão de comportamento. A independência financeira não é um lugar onde você chega, é uma construção cotidiana. É como se alimentar ou fazer atividade física, você precisa fazer pelo resto da vida. Cuidar do dinheiro também. Traçar objetivos muito claros, saber qual renda você quer ter lá na frente. Não tem caminho sem sacrifício, sem fazer concessões. A lógica de orçamento em que as pessoas ganham, gastam e poupam o que sobra está errada. Elas têm que ganhar, poupar e aí sim gastar o que sobra. A inversão dessa lógica já melhora bastante.
InvestNews — Devemos abrir mão dos objetivos imediatos para priorizar a construção do patrimônio?
Quando você recebe o salário, ele tem um destino que é sua sobrevivência. Não acho que o caminho é abrir mão das coisas que dão prazer. Você tem que pagar sua moradia, alimentação. Existem as prioridades financeiras de curto e médio prazo e depois os gastos. Fazer escolhas é entender a diferença entre padrão de gastos e padrão de vida. Se você sai três vezes por semana, saia duas. Se viaja 10 dias por ano, viaje cinco ou abra mão de algo para manter os 10. A escassez de dinheiro vai fazer com que administre melhor. A gente sempre privilegia o gasto antes do investimento e a ordem está errada, aí nunca sobra mesmo. O gasto cotidiano não é ruim, mas é um problema quando ele é mais importante no seu orçamento do que o futuro financeiro. Dessa forma não se consegue parar de trabalhar e viver de renda.
InvestNews — É correto associar a liberdade financeira a não precisar mais trabalhar?
Temos que ressignificar o trabalho. Ele não deve servir só para dar dinheiro e querermos nos ver livres dele. Ele tem uma função social, de produtividade e sanidade, são outros papéis. Quem você conhece que é milionário e não trabalha? Pouquíssimos. Talvez as pessoas estejam buscando algo que não querem. A maior parte das pessoas ricas busca alguma ocupação. Será que a pessoa quer de fato parar de trabalhar? O trabalho não pode servir apenas para dar dinheiro. Não só para isso, mas para isso também.
InvestNews — É possível perder a independência financeira já conquistada?
Estou apresentando um acervo de filmes antigos para meus filhos. Vimos “Até que a Sorte nos Separe” (2012), que conta a história de um pai de família que ganha R$ 100 milhões na Mega Sena e gasta todo o dinheiro. Meu filho adorou e ficou com a história na cabeça. Por isso acredito que a independência financeira é uma busca constante. Um dia você vai precisar dessa renda quando não tiver mais capacidade de produzi-la. Não chega a ser uma ilusão, mas é uma expectativa frustrante. Aos 30 anos, você vão vai viajar o resto do mundo, vai primeiro precisar de muito recurso para isso. Pessoas muito bem sucedidas não param de trabalhar. É frustrante achar que vai chegar a um valor como R$ 100 mil ou R$ 200 milhões e parar. Não importa o valor, esse dinheiro será finito em algum momento.
InvestNews — Hoje, o patrimônio de R$ 1 milhão é suficiente para garantir o sustento sem precisar trabalhar?
Uma coisa é querer chegar a R$ 1 milhão e parar de trabalhar quando seu padrão de gastos é de R$ 500. Se você está no começo da carreira, tem 20 anos e tem um padrão de vida baixo, parar de trabalhar pode fazer sentido. Mas essa evolução patrimonial vai junto com o nível de gastos. Quando você estiver quase chegando perto de R$ 1 milhão, seu padrão de gastos vai estar tão maior que pode não ser mais suficiente porque você ancorou essa quantia a uma realidade muito diferente. Fiz uma enquete no Instagram e o valor médio imaginário das pessoas para parar de trabalhar foi de R$ 3 milhões. Se você tem um padrão de despesa de R$ 1 mil por mês, R$ 1 milhao pode bastar. Mas será que gasta só isso? Esse valor vai permitir mesmo que você pare de trabalhar aos 30, 40 ou 50 anos? Não vai ser possível.
InvestNews — Ser capaz de viver do próprio trabalho já não é uma espécie de liberdade financeira?
Hoje posso me considerar independente, mas a vida é imprevisível. Estamos em uma pandemia, uma situação na qual, para muitos, a renda acabou no minuto seguinte ao lockdown. Essa pessoa que um dia antes podia viver com a própria renda no dia seguinte não tinha mais. Uma coisa é o poder de compra. Já a liberdade financeira é aquele colchão que permite passar pelos imprevistos da vida. Quanto mais tempo passa, mais heterogêneos são estes caminhos. A velhice é muito assim. Pode ser que você tenha uma necessidade especial lá na frente. Um jovem de 30 anos hoje vai viver facilmente por 90 anos. Se o patrimônio que ele conseguiu produzir render por 10 anos para conseguir sobreviver por 60 anos é desafiador. Não quero ser negativa, mas precisamos reconsiderar o que é parar de trabalhar e o que é independência financeira. O trabalho está mais relacionado a só trazer dinheiro e a independência financeira mais do que comprar ou não comprar.
InvestNews — Vale a pena abrir mão de reserva de emergência para se livrar de uma dívida?
56% das pessoas das classes A, B e C entraram na pandemia sem uma reserva financeira. Talvez com um poder de compra, mas sem uma reserva. Se as pessoas tinham dívida, é mais preocupante. O jeito é tentar negociar e não se endividar mais. Quem tem uma reserva é bom esperar um pouco a estabilidade. A menos que sejam dívidas como financiamento do apartamento, talvez valha renegociar uma nova taxa porque os juros caíram. Mas se é o rotativo do cartão de crédito pode ser melhor tentar quitar e abrir mão da reserva. Se é reserva de emergência, é para ser usada. Quando se pensa que dinheiro é só para curto prazo é que se compromete a independência financeira.
InvestNews — Qual seu conselho para quem está determinado a ser financeiramente independente?
Tem a regra básica. Para ter bons investimentos, precisamos de tempo e dinheiro. Quanto antes começar, o esforço financeiro necessário é menor. Começar aos 20 anos é melhor que aos 30. Mas uma pessoa de 40 anos tem pelo menos mais 30 anos pela frente para viver. É possível chegar lá, mas é bem desafiador. É preciso estar muito claro para saber o tamanho do desafio para chegar lá. Não é uma questão de quanto você tem, mas de como você usa este recurso.
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