O que seus stories do Instagram, playlists no Spotify e fotos na nuvem têm em comum? Além dos registros de momentos únicos de sua vida, eles podem se tornar um legado ou um problema quando você não estiver mais aqui.
Saiba de uma coisa: todos os seus perfis em plataformas digitais representam algum ativo, espécie de valor que não necessariamente se converte em dinheiro. Em muitos casos, ele é mais de ordem sentimental, como uma memória afetiva.
O balaio é grande e inclui perfis de redes sociais, blogs, canais de YouTube, vídeos, dados existentes na nuvem, moedas digitais, e-mails, mensagens, contas de streaming, licenças de software, milhas aéreas e informações pessoais existentes em celulares e computadores. E tudo isso precisa seguir um destino.
Em 2016, um tribunal no Reino Unido decidiu que a coleção de bitcoins de um homem falecido fazia parte de sua herança, apesar de ele não ter deixado instruções sobre o que fazer com a moeda digital. O caso foi importante porque criou precedentes sobre as criptomoedas em questões de herança por lá.
Nos Estados Unidos, em 2017, um tribunal da Pensilvânia decidiu que os pais de um adolescente que cometeu suicídio poderiam acessar suas contas de redes sociais para investigar se ele havia sido vítima de bullying.
Na China, desde 2020, a legislação permite que criptomoedas sejam herdadas como qualquer outro bem. Isso significa que, por lá, os herdeiros podem ter acesso legal a carteiras digitais e ativos financeiros armazenados virtualmente.
No Brasil, a morte da cantora Marília Mendonça, vítima da queda de um avião no interior de Minas Gerais em 2021, jogou luz à questão. É que foram incluídos em seu inventário criptoativos, contas em redes sociais — como Instagram e Youtube com milhões de seguidores — e até senhas de e-mail.
Mas eis um ponto: a regulação da transmissão de bens digitais por aqui ainda aguarda avanço de um projeto de lei no Congresso Nacional que atualiza o Código Civil, cuja última mudança ocorreu em 2002, ano em que pouco se falava sobre o assunto.
O Código Civil legisla sobre esse tipo de assunto porque reúne um conjunto de regras aos brasileiros desde o momento em que são concebidos (ou seja, antes do nascimento) até após a morte. Nele constam, por exemplo, normas relacionadas ao casamento, às atividades em sociedade, como a regulação de empresas e contratos, e os processos de sucessão e herança.
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O novo texto prevê que os ativos digitais podem ser transferidos para herdeiros, assim como já acontece com o patrimônio acumulado no mundo offline. Especialistas em Direito de Família e Sucessão Patrimonial consultados pelo InvestNews dizem que o novo texto do Código Civil traz segurança jurídica ao definir que o dono dos bens digitais pode planejar o destino de seus ativos digitais.
O projeto de lei divide em duas categorias o que pode integrar um patrimônio digital. De um lado estão os bens digitais com natureza econômica, como investimentos em criptomoedas ou perfis monetizados em redes sociais. No segundo grupo figuram os ativos de valor inestimável, como arquivos pessoais ou perfis que formam uma personalidade social no meio digital, sem qualquer cunho econômico.
Mas há desafios. A advogada Marina Dinamarco, que atua em São Paulo, aponta que muitas plataformas possuem seus próprios termos de uso, o que gera conflitos sobre o acesso e a transferência das contas.
“E nem sempre os herdeiros terão acesso automático às informações digitais, pois mensagens privadas só poderão ser consultadas mediante autorização judicial”, salienta.
Outro ponto polêmico do texto, segundo Dinamarco, é a exclusão automática de contas públicas de usuários falecidos, que não tenham herdeiros, após 180 dias. “Isso pode levar à perda de conteúdos históricos ou culturais importantes”, enfatiza a especialista.
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Quem tem direito à herança digital?
Os herdeiros dos bens digitais são os mesmos que têm direito ao patrimônio da pessoa falecida. Se não houver um testamento, a herança digital seguirá o destino previsto em lei. Veja:
- 1º lugar: serão beneficiados os descendentes (filhos, netos) em concorrência com cônjuge ou companheiro;
- 2º lugar: os ascendentes (pais, avós) em concorrência com o cônjuge ou companheiro – se não houver filhos.
Na ausência de ascendentes e descendentes, somente o cônjuge ou companheiro será o herdeiro. Se a pessoa falecida também não for casada ou tiver uma união estável, os parentes colaterais receberão os bens digitais.
Como ficam os bens digitais que geram lucro?
Muitos bens digitais podem continuar a gerar receita mesmo após o falecimento de seu titular. Estão neste grupo, por exemplo, royalties de músicas e livros online.
Um caso conhecido sobre isso é o de Gal Costa. Os royalties oriundos das execuções musicais da cantora, que morreu em 2022, serão divididos em partes iguais para o filho dela, Gabriel Burgos, e a viúva, Wilma Petrillo, até a venda da casa onde a cantora viveu, no Jardim Europa (bairro nobre de São Paulo).
Anúncios em blogs ou canais do YouTube, provenientes de visualizações e interações dos usuários, e os rendimentos de investimentos em criptomoedas, cuja valorização e negociações seguem no ambiente digital, também podem encher o bolso dos herdeiros.
No caso das criptomoedas, os especialistas em direito sucessório afirmam que os detentores desses bens digitais especifiquem os valores que possuem. E o formato menos burocrático para isso é por meio de um testamento. No documento, por exemplo, é importante detalhar como os herdeiros terão acesso aos criptoativos.
Quais bens digitais têm dificuldades na repartição?
Alguns bens vêm encontrando mais dificuldade na sucessão. É o caso das contas de streaming, licenças de software e e-books. Advogados explicam que questões contratuais têm travado a disponibilidade desses ativos digitais aos herdeiros.
“As assinaturas dos serviços de streaming são tidas como concedidas ao usuário e, uma vez já falecido, extingue-se o direito de uso, bem como os livros e as músicas adquiridos digitalmente. A menos que a plataforma ofereça o recurso de transmissão, estão licenciados para o uso exclusivo da pessoa que o adquiriu”, diz a advogada Julia Moreira, sócia de família e planejamento sucessório do PLKC.
As milhas aéreas têm passado pela mesma situação. Em 2022, por exemplo, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidiu pela exclusão do benefício em um processo de sucessão por alegações contratuais.
E tudo o que é da privacidade da pessoa falecida tem mais dificuldade de ser repassado por configurar “violação ao direito à privacidade”, enfatiza o advogado Fábio Botelho Egas. Estão nesta lista, por exemplo, as trocas de mensagem, os áudios, as fotografias e outras imagens da pessoa falecida.
Perfis em redes sociais de pessoas que já morreram podem até seguir ativas, mas com o status de uma página in memorian. É o caso do apresentador Gugu Liberato, morto em 2019. Sua conta no Instagram tornou-se um espaço virtual para homenagens e recordações.
O Instagram permite que familiares solicitem a exclusão da conta do falecido. Para transformar o perfil em um memorial, é necessário comprovar a morte do dono da conta com documentos.
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Como planejar a herança digital?
Organizar os bens digitais é um importante passo para evitar problemas.
A primeira recomendação dos advogados é identificar e documentar todos os ativos digitais e seus recursos de acesso, pois podem acabar se perdendo ou sendo esquecidos.
Fazer um testamento especificando a existência e a localização de todos os ativos digitais, além de orientar sobre o destino de cada um deles, é fundamental.
“O testamento pode conter informações como senhas, chaves de acesso e diretrizes sobre a manutenção ou encerramento de perfis online, garantindo que os herdeiros tenham acesso ao patrimônio digital e possam administrá-lo de maneira eficiente”, aponta a advogada Marina Dinamarco.
Importante salientar que bens digitais também podem integrar inventários extrajudiciais, processo de repartição de bens formalizado em cartório, mesmo se houver herdeiros menores de idade. Essa possibilidade passou a valer com a publicação da Resolução 571/2024, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
E pensando em filhos pequenos, ainda segundo os advogados, é importante definir regras de gestão e proteção dos ativos digitais até que os herdeiros atinjam a maioridade. Isso pode incluir a nomeação de um responsável para gerenciar os bens em nome dos menores assegurando que os ativos sejam preservados e continuem gerando benefícios.