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Caixa puxa a fila – e crédito para comprar imóvel fica cada vez mais difícil para a classe média

Quem comprou um imóvel na planta e pagou menos de 30% vai ter de correr para buscar mais dinheiro para financiar

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Ilustração: João Brito

A Caixa Econômica Federal (CEF) puxou a fila do aumento de restrições ao crédito imobiliário e subiu de 20% para 30% a exigência de entrada na aquisição da casa própria. Isso significa que quem já comprou um imóvel na planta e pagou menos de 30% do valor vai ter de correr para buscar mais dinheiro quando receber o imóvel e for pedir o empréstimo. Ou pagar mais caro em um dos bancos privados nos quais a entrada mínima ainda é de 20% do valor da casa ou do apartamento.

Um alto executivo de uma das principais incorporadoras do país afirmou ao InvestNews em condição de anonimato que o peso dessas restrições vai recair diretamente sobre a classe média. Os extremos do mercado, os imóveis de luxo e os populares, dificilmente enfrentam problemas com disponibilidade de recursos.

No caso dos imóveis usados, a consequência prática do aumento de restrições será a redução significativa da demanda, como já ocorreu no passado. Priscilla Basso, coordenadora da plataforma digital de crédito imobiliário Melhor Taxa, diz que os bancos passaram a priorizar os financiamentos de quem comprou na planta e têm deixado de lado as operações para compras de unidades de segunda mão.

“Nem a Caixa tem mais reserva para o mercado de imóveis usados”, afirma a especialista. O banco estatal é ao mesmo tempo o termômetro e a locomotiva do mercado. Sozinho, representa 67% dos financiamentos do setor (imóveis novos e usados), segundo dados da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip).

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Nos dados da Melhor Taxa, no segmento chamado de Sistema Financeiro da Habitação (que utiliza os recursos da caderneta de poupança como funding), a Caixa oferece o menor custo médio para os empréstimos imobiliários, com taxa mínima de juro 9,99% ao ano (mais a variação da TR). Entre as instituições privadas, o Bradesco fica em segundo, com 10,49% ao ano, seguido de Itaú Unibanco e Santander, com 10,99% anuais cada uma.

À primeira vista pequena, a diferença de 0,5 ponto a um ponto percentual é gigantesca no longo prazo e pode significar dezenas de milhares de reais. Veja o caso de quem comprou um apartamento de R$ 1,5 milhão na planta, pagou durante a obra 20% desse valor (R$ 300 mil) e que tinha a intenção de fazer financiamento com a Caixa. Com a restrição do banco estatal de liberar apenas financiamentos com 30% de entrada, esse comprador terá de arrumar de uma hora para outra R$ 150 mil (10% adicionais), equivalente a um Toyota Corolla 0 km, ou partir para buscar financiamento em outro banco.

No Bradesco, que cobra 10,49% ao ano, esse financiamento de R$ 1,2 milhão em 360 meses custaria R$ 83 mil a mais do que na Caixa. No Itaú e no Santander, a 10,99%, R$ 165 mil a mais.

Se a entrada for a mesma da agora parcela mínima exigida pela Caixa, de 30%, o financiamento de R$ 1,050 milhão (R$ 1,5 milhão menos R$ 450 mil, parcela exigida para a entrada) em 360 meses vai gerar um custo extra de R$ 73 mil no Bradesco e R$ 144 mil no Itaú e no Santander.

Bancos estão mais seletivos

Profissionais que trabalham em imobiliárias e com crédito imobiliário dizem que, além de os bancos já terem reduzido o volume de recursos para a compra de imóveis usados, as instituições também começaram a apertar as condições de aprovação. A régua de liberação de crédito subiu. Agora só clientes com “relacionamento”, ou seja, que tenham investimentos, recebam salário no banco e consumam produtos financeiros da casa têm tido vez nessa fila.

Esse tipo de restrição surge em momentos nos quais os bancos buscam reduzir o risco da carteira. E também costumam anteceder medidas vistas como impopulares, como a já adotada pela Caixa de aumentar o nível da entrada ou de elevar as taxas mínimas do financiamento.

A decisão da Caixa sinaliza ainda tempos mais sombrios para os próximos meses. Basso, da Melhor Taxa, vê possibilidade de os bancos aumentarem os custos do crédito no início de 2025. Essa alta seria uma reação a uma eventual elevação da taxa básica Selic pelo Banco Central nas reuniões de política monetária de novembro e de dezembro.

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Hoje, a Selic está em 10,75% ao ano e a pesquisa semanal Focus feita pelo BC com profissionais do mercado financeiro indica uma expectativa de que a taxa feche 2024 em 11,75%, ou seja, um ponto percentual acima do nível atual. Isso significa duas elevações de 0,50 ponto cada nos próximos dois meses.

Os bancos tendem a fazer uma pequena correção de taxas do crédito imobiliário para se ajustar ao novo cenário de juros. A coordenadora da Melhor Taxa avalia ser possível um aumento médio de até 0,5 ponto no custo do financiamento habitacional.

Entre as empresas do setor imobiliário, o quadro começa a preocupar. O alto executivo que conversou com o InvestNews revelou pessimismo para o início do próximo ano. “Nós começamos 2024 desanimados, e, com o passar dos meses, ficamos mais animados. Mas vamos fechar o ano novamente desanimados. E com expectativas pessimistas para o começo do ano que vem”, diz ele, ressaltando que o quadro é pior para os compradores de classe média.

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O público de alta renda, que consome residências acima de R$ 2 milhões, costuma ter reservas e maiores chances de aprovação de financiamentos. As linhas de crédito nessa faixa também não dependem de recursos captados na caderneta de poupança (chamado no mercado de Sistema Financeiro Imobiliário – SFI). Os recursos costumam ser captados com produtos como Letras de Crédito Imobiliário (LCI) e outros títulos emitidos pelos bancos.

Já os imóveis populares têm recursos subsidiados e assegurados pelo FGTS. Essa fonte recebe por lei contribuições de todas as empresas e trabalhadores com carteira assinada.

O executivo conta que a faixa de residências com preços ente R$ 500 mil e R$ 1,5 milhão foi a que menos vendeu neste ano até o momento. No fim do terceiro trimestre, a média de vendas de lançamentos de imóveis nesses patamares de valores ficou em 24% do total, contra uma média histórica de 40%.

A crise da caderneta de poupança

A origem das dificuldades nos financiamentos do Sistema Financeiro da Habitação (SFH) vem do encolhimento da caderneta de poupança. Entre janeiro e agosto, houve uma saída líquida de recursos R$ 12,2 bilhões. Em 2023, a diferença ente depósitos e saques ficou negativa em R$ 66,7 bilhões.

A Caixa já tomou decisões drásticas no passado em situações de queda de recursos disponíveis. Em abril de 2015, durante a recessão mais duradoura que o país enfrentou, o banco estatal aumentou para 50% a entrada mínima em qualquer linha de financiamento habitacional.

No mercado imobiliário, o resultado foi uma queda de 60% entre o pico de vendas em 2014 e o pior momento, em meados de 2016. A aquisição de unidades saiu de 375 mil no fim de 2014 para 150 mil em 2016. No período, as novas concessões de crédito imobiliário recuaram 55,5%. O volume financeiro destinado à aquisição de casas ou apartamentos caiu de R$ 81 bilhões para R$ 36 bilhões.

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Naquele período, a poupança também sofria com saques líquidos. Apenas em 2015, houve retiradas líquidas de mais de R$ 50 bilhões. A Caixa adotou medidas ainda mais restritivas há dez anos, porque na época a caderneta tinha uma representatividade muito maior do que hoje como fonte de recursos.

A poupança representava em 2015 mais de 65% de todo o “funding”, ou seja, o montante em estoque para alimentar o crédito imobiliário. Desde então, a participação da caderneta tem minguado. Hoje, representa cerca de metade de uma década atrás ou apenas 34% do total.

O espaço deixado pelo tradicional produto de investimento tem sido ocupado por instrumentos de captação de mercado de capitais. São títulos de dívida emitidos pelos bancos ou empresas para obter recursos de investidores. Exemplos são as citadas LCI. Mas também fazem parte desse grupo estruturas como as letras garantidas imobiliárias (LIG), os certificados de recebíveis imobiliários (CRI) e os fundos imobiliários (FII).

Juntos, esses instrumentos de captação privada já representam 40% do total das fontes de recursos para o setor. A maior participação entre esses produtos pertence à LCI, com 16% do total e um saldo de R$ 363 bilhões. Em seguida aparece o FII, com R$ 237 bilhões e 10% de participação. O CRI surge em terceiro com uma fatia de 9% e estoque de R$ 208 bilhões. Por último, aparecem as LIG, com 5% e R$ 117 bilhões.

A poupança sozinha ainda apresenta um saldo de R$ 763 bilhões em recursos no sistema, enquanto o FGTS banca R$ 596 bilhões no estoque disponível para financiamentos, com participação de 26%. No total, segundo a Abecip, o “funding” do crédito imobiliário alcança R$ 2,28 trilhões.

Há, na visão do alto executivo da incorporadora ouvida pelo InvestNews, um fator que pode mudar tudo na equação econômica de 2025: o governo tomar medidas concretas para confirmar o compromisso com a âncora fiscal. “Se a curva de juros começar a descer, vai destravar um forte movimento de compra [de imóveis].”

Nesse cenário, o BC poderia voltar a reduzir a Selic, o que levaria os bancos a diminuir as taxas de crédito imobiliário.

Até lá, a classe média vai ter de apertar os cintos, porque o crédito imobiliário sumiu.

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