A dificuldade de encontrar profissionais qualificados, especialmente engenheiros e técnicos, não é exclusividade da Embraer. Indústrias de diferentes áreas enfrentam o desafio de encontrar ou reter seus colaboradores, especialmente aqueles que atuam no core do negócio.
O assunto ganhou tanta relevância que chegou ao Banco Central. As atas que explicam as decisões sobre juros mostram: o aquecimento do mercado de trabalho se tornou uma fonte de preocupação, que pode contribuir para uma nova elevação da taxa Selic. Claro que ter mais emprego e renda é uma boa notícia. O problema é que o país não se preparou na última década para lidar com esse crescimento sem que ele gere inflação.
A falta de mão de obra especializada se explica, em parte, pela volta das concessões, tanto federais quanto estaduais. Esse fenômeno abre caminho para investimentos em obras de saneamento, ferrovias, estradas e aeroportos – o que aquece a demanda por profissionais qualificados; e diminui a oferta desse “produto” na praça.
Também existem atividades relativamente novas surgindo. É o que acontece, por exemplo, no setor elétrico, impulsionado por dois motores principais: a transição para matrizes mais limpas e o mercado livre de energia, que chegará ao varejo no ano que vem.
Mas não é só isso. Temos aí um problema que começou há uma década.
Nos últimos 10 anos, o mercado para engenheiros de diferentes especialidades ficou restrito: menos vagas e salários muito menores. Isso aconteceu por causa da recessão que o país enfrentou entre 2015 e 2016 e que inibiu o avanço da indústria. Quadro agravado pela crise das grandes empreiteiras implicadas na Operação Lava-Jato, que começou em março de 2014.
Nesse meio tempo, muita gente que se formou em engenharia foi buscar áreas de trabalho com melhor remuneração – como o mercado financeiro, que absorveu boa parte dessa turma que venceu as disciplinas de Cálculo 1, 2, 3 e 4.
E no futuro próximo o problema tende a se agravar.
Um levantamento feito pelo InvestNews mostra que, entre 2012 e 2022, o número de ingressantes em faculdades de engenharia civil caiu 28%. O tombo foi de 35% no caso de engenharia física e química.
Não bastasse esse cenário, a pandemia, que forçou o ensino à distância de uma hora para a outra, agravou ainda mais o quadro. A consequência foi uma espécie de “apagão de talentos”, na definição de Cristiana Gomes, vice-presidente de Gente, Gestão e Sustentabilidade da Atvos, do setor sucroenergético:
“Se tivesse o poder de criar uma usina em um passe de mágica, eu não teria engenheiros e gerentes para colocá-la em funcionamento.”
cristiana Gomes, da Atvos
A natureza da Atvos potencializa os efeitos do mercado de trabalho aquecido. Além de produzir energia limpa, setor em que a concorrência é crescente – inclusive na busca por profissionais –, as usinas da companhia ficam afastadas dos grandes centros, distribuídas entre os estados de Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e o interior de São Paulo. É muito mais difícil atrair profissionais para esses lugares, explica Cristiana.
A FESA Group, empresa de recrutamento e seleção de executivos, vem acompanhando o aquecimento do mercado de trabalho no setor industrial. Tanto que, em 2023, a receita da empresa cresceu 50% em relação a 2022.
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A vice-presidente de indústria e infraestrutura da empresa, Marcela Cruz Mendonça, diz que a falta de mão de obra não está espalhada pela indústria como um todo. Concentra-se em setores específicos. E o de energia, sem dúvida, é um dos carros-chefes: o faturamento da FESA com a busca de executivos para o setor de cresceu 260% no ano passado.
“Tem muita coisa acontecendo por causa da onda de transição energética e poucas pessoas com conhecimento técnico”, diz. Com menos oferta de profissionais do que demanda, muitas empresas têm buscado engenheiros ou técnicos de setores correlatos: para trabalhar em projetos de hidrogênio verde, por exemplo, chamam profissionais vindos do setor de óleo e gás.
“Existem hoje novas funções e novos setores, e não houve formação de profissionais para eles.”
Marcela Cruz Mendonça, da Fesa
Um bom exemplo é o que ocorre nas distribuidoras de energia. Essas empresas precisam montar times comerciais para atender clientes de varejo, que terão acesso ao mercado livre de energia a partir do ano que vem. E muitas estão contratando profissionais do setor de telecomunicações, já que ali a venda de serviços para a pessoa física sempre foi estratégica. O problema, Marcela diz, é investir tempo no treinamento dessas pessoas que vêm de outros setores.
Pleno emprego? Ainda não é por aí
É inegável que a indústria vive um momento de mercado de trabalho aquecido. Mas esse é um fenômeno concentrado em alguns setores, que nem de longe indica um cenário de “pleno emprego”, afirma o economista-chefe da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), Igor Rocha. Ele quer dizer o seguinte: diferentemente do que se viu no início dos anos 2010, o país não sofre hoje de uma ausência generalizada de profissionais.
“Não é uma situação crítica como aquela, que se viu em 2010, 2011. Mas há um aquecimento do mercado de trabalho em alguns segmentos, como o de veículos pesados, linha branca e construção civil.”
Igor Rocha, da fiesp
Em 2010, lembra o economista, o PIB do Brasil cresceu 7,5%. “Mas nos últimos 10 anos anos, o crescimento foi de 1% ao ano, em média”, diz. Os números confirmam que foi a dinâmica econômica fraca da última década que impediu a formação de determinadas classes de profissionais – como os engenheiros. O baixo crescimento diminuiu investimentos, esfriou a procura por profissionais e, portanto, achatou os salários.
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A retomada atual do mercado de trabalho começa a inverter esse ciclo. Por consequência dessa relação apertada de oferta e demanda, os salários para algumas categorias de profissionais já voltaram a subir. Segundo Marcela, da FESA, é possível dizer que, no setor de construção civil, eles voltaram para os níveis pré-Lava Jato.
Na construção civil, isso vale não só para engenheiros e técnicos, mas também para posições de gestão. “É um setor que opera com margens apertadas. Precisa de muita gestão e controle. E faltam bons gestores”, diz. Aliás, outro efeito dessa carência de mão de obra especializada tem gerado é a contratação de pessoas “não tão bem preparadas” para assumir determinadas funções, afirma a VP da FESA Group.
Diante disso, o caminho da formação de profissionais é quase obrigatório para boa parte das indústrias. A Aura Minerals, mineradora com foco na exploração, desenvolvimento e operação de projetos de ouro, cobre e outros metais nas Américas, aumentou o investimento nesses programas quando viu a “luz vermelha” da falta de profissionais se acender há cerca de cinco anos.
A head de Pessoas, ESG e Comunicação da Aura Minerals, da Aura, Isabela Dumont, explica que a companhia precisa, por exemplo, de engenheiros de minas e geólogos para operar – mão de obra super especializada. E sentiu em cheio a concorrência por esses profissionais quando a exploração de lítio ganhou força, há alguns anos, sob impacto do avanço da indústria dos carros elétricos. “O boom do lítio já passou, mas a gente conseguiu evoluir nossos processos de formação e retenção para enfrentar essa concorrência”, diz.
O setor de tecnologia é outro que contribui para o aquecimento do mercado de trabalho. A AWS (Amazon Web Services) anunciou nesta quarta-feira, 11, um investimento de R$ 10,1 bilhões (US$ 1,8 bilhão) para a expansão de sua infraestrutura de data centers no Brasil até 2034. E, junto com o anúncio, informou que vai manter programas de treinamento para qualificar a força de trabalho em computação em nuvem. Desde 2017, a empresa capacitou mais de dois milhões de pessoas na América Latina, sendo 800 mil delas no Brasil.
O problema também chega à base
A construtora Tenda já está super acostumada aos altos e baixos do mercado de trabalho. Segundo Daniela Ferrari, diretora de relações institucionais, o mercado imobiliário acompanha de perto as oscilações da economia. No caso da Tenda, que atua exclusivamente no segmento atendido pelas faixas 1 e 2 do programa Minha Casa Minha Vida, a política específica de cada governo para o programa habitacional é ainda mais determinante.
“O mercado imobiliário é cíclico, é da natureza do setor. Hoje, estamos vivendo um período aquecido, mas sabemos que é uma oscilação natural.”
Daniela Ferrari, da tenda
Para lidar com isso, a companhia investiu em aumentar o grau de industrialização nos processos da companhia. Isso reduz a dependência de mão de obra, que representa 40% do custo total do empreendimento.
Além disso, a empresa mantém alguns programas de formação e recrutamento alternativo – 8% da força de trabalho hoje é composta por refugiados, boa parte deles vindos da Venezuela. Mulheres também estão sendo incorporadas ao trabalho no canteiro de obras. Além disso, a empresa mantém uma fábrica-escola, de onde vêm boa parte dos “oficiais”, que são os trabalhadores especialistas em determinadas funções dentro da obra.