Pela tradição, anarquismo está ligado à ideia de esquerda de uma sociedade coletivista, sem Estado e sem propriedade privada. Mas nas últimas décadas a palavra também foi apropriada por outro tipo de anarquista. Na versão dos anarcocapitalistas ou libertários, o Estado poderia ser substituído por empresas, que cuidam da segurança, da saúde, da educação e fornecem, totalmente descentralizadas, as necessidades da população, ou qualquer arranjo, desde que voluntário. Mas a propriedade privada é sagrada.
A moeda seria privada, negociada em um mercado aberto e livre da interferência dos bancos centrais ou do sistema financeiro tradicional. Pensou nas criptomoedas? É como seria. Agora, o quanto tudo poderia funcionar? É a pergunta que me interessou pela série “Os Anarquistas”, da HBO, mais uma atração na leva atual do streaming que discute ideias de economia.
O programa conta a história de uma comunidade anarquista que, a partir de 2015, se fixou na paradisíaca Acapulco, no México, seguindo uma conferência anual, Anarchapulco, criada por Jeff Berwick, carismático empreendedor e ativista que, depois de enriquecer vendendo sua startup, Stockhouse, foi um dos primeiros investidores do bitcoin e passou anos experimentando iniciativas libertárias no Chile e na América Central até se fixar em solo mexicano.
De um início modesto e desorganizado, Anarchapulco logo começou a atrair anarquistas, na maioria, pessoas que chegaram à ideologia pela escritora Ayn Rand e seu clássico “Atlas Acorrentado” e agora fugiam da autoridade do governo e do controle dos bancos americanos. Em dois anos, era visitado por estrelas como Ron Paul, que concorreu três vezes a presidente dos Estados Unidos pelo Partido Libertário, e pessoas do Vale do Silício.
Do início, a história é idílica como o começo de qualquer comunidade que resolve se agrupar por interesses comuns. Os protagonistas são simpáticos e chegam a beirar a inocência, como o casal de jovens John Galton e Lily Forester, que chegam a Acapulco fugindo de acusações nos Estados Unidos. Todos estão empolgados com a possibilidade de viver conforme seus ideais.
Mas enquanto o movimento cresce, ocorre o boom que levou o bitcoin de US$ 1,3 mil a mais de US$ 30 mil entre 2015 e 2019, enriquecendo muitos integrantes. Dinheiro, conflitos pessoais, ressentimentos, drogas e até um assassinato passam a questionar o estilo de vida da comunidade e sua ingênua relação com os violentos cartéis de narcotraficantes que dominam Acapulco.
A experiência narrada em “Os Anarquistas” não condena como impraticáveis as ideias libertárias, que sequer foram experimentadas de fato. Para começar, estavam todos vivendo sob as leis e o controle do Estado mexicano. Mas ressalta os limites para acomodar dentro da mesma “utopia” aqueles que ganharam muito dinheiro e querem fugir dos impostos e de quem defende uma sociedade onde todo mundo deve ser livre para fazer o que quiser.
E no fim, como em qualquer projeto coletivo, a complicada tarefa de lidar com as emoções e vaidades humanas.
*Samy Dana é Ph.D em Business, apresentador do Cafeína/InvestNews no YouTube e comentarista econômico. |
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