Uma loja de produtos eletrônicos tem R$ 1 milhão a receber ao longo de 12 meses, fruto de vendas parceladas no cartão de crédito. Mas o dono do estabelecimento precisa do dinheiro à vista para tocar o negócio. Para adiantar esse recebimento, ele procura um grupo de investidores. Eles topam pagar agora R$ 900 mil. Em troca, ganham o direito de receber esse fluxo de pagamentos. Essa diferença de R$ 100 mil é o lucro que os investidores vão ganhar na operação – desde que não tomem calote, claro.

Em uma escala maior, é assim que funcionam os fundos de investimento em direitos creditórios (FIDCs). Eles ganham um “prêmio” por antecipar para empresas seus créditos que só serão pagos no futuro: pode ser a venda parcelada de cartão de crédito, mas também no crediário, mensalidades escolares, tarifas de concessionárias de energia, entre outros. É uma estrutura complexa e, por isso, ainda pouco conhecida do universo das pessoas físicas.

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Nos últimos meses, por causa de mudanças recentes de regulação, o FIDC começou a entrar no cardápio de alguns investidores de varejo que buscam diversificação – sim, especialistas dizem que o FIDC deve entrar na carteira caso você já tenha produtos de renda fixa mais tradicionais. Mas, antes de optar por esse caminho, é preciso entender como o produto funciona. E quais os cuidados a serem observados.

Em alta

Após um ano e meio oscilando entre 20,4 mil e 22,7 mil, o número de investidores pessoa física em FDICs disparou: chegou a 37,8 mil em maio, um avanço de 70% em relação a dezembro de 2023, segundo dados da Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima). Números até junho revelam ainda que os aportes financeiros nesses fundos aumentaram 17,7% neste ano, para R$ 11,2 bilhões.

A maior parte desses investidores ainda são classificados como “qualificados”, aqueles que têm mais de R$ 1 milhão investidos. Só agora é que o crescimento deve alcançar o varejo: em outubro do ano passado, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) permitiu que esse público invista em FIDCs.

Como a regra é nova, ainda são poucas as casas que oferecem FIDCs que seguem às regras específicas para o varejo (leia abaixo). Mas há alguns fundos sendo adaptados, o que significa que a oferta do produto por seu assessor financeiro pode chegar a qualquer momento.

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Além do impulso regulatório, Leonardo Calixto, da Reag Asset Management, diz que o cenário atual é propício aos FDICs. Primeiro, porque tem muita empresa buscando formas de conseguir caminhos mais baratos de financiamento. E antecipar o crédito que elas têm a receber junto aos fundos está entre elas.

Já do lado do investidor, o produto pode oferecer retornos competitivos. E por isso figura como alternativa de diversificação da carteira.

Mas cuidado: isso envolve, necessariamente, a exposição a um risco nada trivial, o do crédito privado, ou seja, o risco de empresas honrarem seus compromissos. Na prática, quando o investidor coloca dinheiro em um FIDC, o que está em jogo é a qualidade daquele crédito que foi antecipado, se o cliente dessa empresa que recorreu ao FIDC vai realmente pagar o que deve. Portanto, o produto é bom se a empresa for saudável financeiramente. E se ela souber conceder crédito.

Para assegurar que uma situação de inadimplência comprometa a saúde do fundo, existe uma complexa estrutura por trás de um FIDC: um consultor, um escriturador (que controla os direitos e pagamentos dos cotistas), um agente de cobrança, agências classificadoras de riscos, um auditor independente e um custodiante (quem cobra, recebe e liquida os direitos creditórios, entre outras funções).

É nesse ponto que Calixto destaca a importância de o interessado em FIDCs pesquisar bem o gestor, responsável pela análise e seleção dos créditos e seus diferente riscos. E dá uma dica: avalie sobretudo a experiência e o desempenho da instituição em momentos de estresse de mercado, como no início de 2023, por conta dos pedidos de recuperação judicial da Americanas e da Light, por exemplo. Se o fundo conseguiu atravessar bem esse período, é porque ele investiu em ativos de qualidade.

Feita essa lição de casa – considerando que o investidor já revisitou seu perfil de risco e refletiu sobre os objetivos (um passo que antecede qualquer decisão) –, especialistas são unânimes em apontar o melhor caminho para quem deseja ingressar nesse universo: escolher um fundo que compre cotas de outro FIDC.

Isso porque, além de uma gestão especializada, essa estratégia consegue pulverizar o risco. Além disso, é importante aplicar em um fundo que permita resgates antecipados. Sim, existem fundos que não oferecem essa opção, o que eleva o chamado risco de liquidez, por isso preparamos um quadro especial com esse e outros detalhes importantes.

Para ter no radar:

FIDCs de varejo têm cartilha própria

Thiago Figueiredo, CIO e gestor da Intrabank, explica que os FIDCs direcionados ao público de varejo precisam seguir normas específicas, todas com foco na segurança. Entre elas está oferecer apenas cotas sêniores – que são menos expostas aos riscos de inadimplência – e que tenham sido avaliadas por uma agência de classificação de risco. Além disso, os créditos correspondentes precisam ser “performados”, ou seja, relativos a uma venda ou prestação de serviço que já ocorreu ou um contrato já fechado. Exemplo: mensalidades que uma faculdade tem a receber de alunos matriculados.

Em abril deste ao, a SRM Asset adaptou um de seus FIDCs para o cliente de varejo. Em junho, a Solis Investimentos lançou seu primeiro fundo de FIDC destinado a esse público. Em uma análise geral, Ricardo Binelli, sócio-diretor da Solis, avalia que o investidor comum está ainda no início de uma curva de aprendizado sobre produto. “As dúvidas são básicas e mais voltadas para entender qual é a relação risco e retorno.”

Na Intrabank, Figueiredo diz que os principais questionamentos do varejo se referem às condições de resgate dos recursos e subordinação das cotas. Nesse ponto, ele reforça a importância de que o interessado leia atentamente o regulamento do fundo, documento que reúne informações essenciais, como origem dos direitos creditórios; política de investimentos; características e condições das cotas etc.

Apesar dos desafios, especialistas comemoram a evolução dessa indústria. Entre dezembro de 2020 e junho de 2024, por exemplo, o patrimônio líquido total dos FIDCs aumentou 160%, atingindo R$ 561 bilhões, segundo pesquisa elaborada pela Quantum Finance

Para Sergio Cutolo, diretor da Anbima, o crescimento das pessoas físicas em FIDCs mostra que a CVM acertou ao autorizá-los ao grande público. Segundo ele, com a adaptação dos estoques à nova regulamentação, cujo prazo termina no fim de novembro, a expectativa é de que mais gestoras se interessem em estruturar produtos para o varejo.