Tem algumas coisas que acontecem na nossa vida que marcam pra sempre nossa percepção de mundo. Essa é uma história sobre isso.
Quando tinha 17 anos, entrei na prestigiada faculdade de direito da PUC-SP. Nos primeiros meses, passei todo o perrengue que uma ainda adolescente sem carta que estuda a 23 quilômetros de casa pode imaginar: ônibus, metrô e mais um ônibus, juntamente com 2 horas e meia de trajeto todos os dias.
Naquela época, meu sonho era tirar carteira de motorista, que para mim representava muito mais do que o direito de conduzir um automóvel: era, no meu pensamento ainda juvenil, um passe para minha liberdade.
Não demorou muito para que esse sonho virasse realidade. Só tinha um detalhe: como eu fazia faculdade particular, não tinha carro. Essa era a condição desde o começo. Mas como minha mãe odiava dirigir, fiz um pacto com ela: ela me emprestava o carro e eu me encarregava de providenciar tudo que ela precisasse: buscá-la no escritório, farmácia, padaria…
Enfim, era um jogo de ganha-ganha para nós duas, com um bônus: a mais nova motorista do pedaço aqui transitava por São Paulo em um Astra 2002 novinho, com ar condicionado e banco de couro. E essa diferença começou a ficar aparente ao longo dos meses, quando meus colegas começaram a também tirar carteira de motorista e a frequentar as ladeiras de Perdizes com seus carros 1.0.
Mas tinha uma diferença fundamental: enquanto eu, com avós analfabetos e vinda de classe “média-média-média”, tive alguma habilidade em negociar um direito de uso com meus pais, muitos deles vinham de famílias bastante abastadas. E, mesmo assim, os carros eram bem simplórios: Celta estava no topo da lista, Peugeot 206 e Gol vinham em segundo lugar. Tinha até uma colega com um desses carros blindados, por imposição do pai, que era banqueiro.
Achava aquilo engraçado, pois, até então, na minha imaginação, quem tinha mais dinheiro comprava carros melhores, só usava roupas de marca, enfim, ostentava para caramba. E de repente me vi com jovens representantes de famílias tradicionais, algumas quatrocentonas, que tomavam cerveja de garrafa no boteco em frente da faculdade, usavam camiseta da Hering e rachavam gasolina e pedágio quando viajávamos.
Aos poucos fui percebendo que existem diferentes tipos de pessoas ricas: obviamente, tem aquelas que vivem em uma bolha e preenchem o estereótipo, porém, há outras que buscam não ostentar e, à primeira vista, parecem ser iguais financeiramente a qualquer pessoa não rica.
Para o primeiro tipo, é importante mostrar o que se tem, pois é parte fundamental de quem essas pessoas são. Já o segundo tipo, no qual se encaixam muitos colegas que tive, parece ter outros tipos de valores e a ostentação é algo quase abominável. Pelo menos, é essa a minha teoria. E acho fundamental entender essa questão para falar de Elon Musk.
Comportamento de Musk
Pois bem. Quando o assunto é Elon Musk, estamos falando do homem mais rico e um dos mais inteligentes do mundo.
Estamos falando de alguém que, apesar de já possuir grande fortuna, se preocupou em criar uma empresa com o discurso ESG em dia, com carros premium que não utilizam combustíveis fósseis. Estamos falando de alguém preocupado em habitar Marte e que conseguiu a proeza de fazer um foguete pousar de ré.
Contudo, também estamos falando de alguém que faz uma aparição vestido de Wario (o vilão dos Mario Bros) no Saturday Night Live, famoso programa de comédia americano, propõe a compra do controle acionário do Twitter (TWTR34) para transformá-la numa rede social onde o free speech seja respeitado e fala sobre… criptomoedas!
Em suma, ele é “o cara”. Um mito. Ou pelo menos parecia ser, até alguns meses atrás.
Especificamente sobre cripto, a história com Elon Musk pode ser resumida brevemente em 3 fases.
A primeira delas começou por volta de 2020. Nesta época, Musk começou a postar tweets reiterados dando conta de que seria um entusiasta de bitcoin (BTC) e trouxe de volta à notoriedade uma “meme coin” denominada Dogecoin (DOGE).
A comunidade de cripto foi ao delírio – e os preços desses dois criptoativos, sem dúvida impulsionado pelas palavras do homem mais rico do mundo, foram pras alturas.
Essa fase foi “coroada” no início de 2021, quando a Tesla (TSLA34) anunciou ter comprado US$ 1,5 bilhão em BTC e passou a aceitar criptomoedas como forma de pagamento.
A adoção institucional parecia um caminho sem volta, e muito se especulava sobre ser apenas questão de tempo até que parte da tesouraria de toda grande empresa fosse também alocada em criptos, especialmente bitcoins.
Acontece que a mineração naquela época estava fortemente alocada na China, por causa do custo de energia e proximidade com os principais fabricantes dos hardwares de mineração. Em maio de 2021, um desastre em uma mina de carvão no país causou um desligamento temporário dessas máquinas, evidenciando que, ao contrário de Musk, o discurso ESG do bitcoin era altamente questionável.
É difícil acreditar que alguém como Musk não sabia que o BTC para ser minerado requer uma quantidade enorme de poder computacional e que ao menos 65% dessa atividade estava alocada na China na época, conhecida por não possuir uma matriz energética das mais ESG.
De toda forma, ele passou a criticar fortemente o bitcoin a partir de então, promovendo apenas DOGE – que, por ser Proof of Work (PoW), poderia sofrer as mesmas críticas que o bitcoin.
O que seguiu após isso foi uma série de tweets invocados, questionando o PoW que, como vocês devem imaginar, também impactaram no preço do BTC, causando a revolta de muitos entusiastas do mercado.
Todavia, apesar de todos os questionamentos de Musk, nada foi feito sobre as reservas em $ BTC da Tesla, que ao final daquele ano tinham se valorizado consideravelmente e causado grande impacto nos resultados financeiros da empresa.
Em 2022, foi iniciada a correção de preços do bitcoin, mas nada sobre as reservas em $ BTC da Tesla havia sido divulgado.
Isso até 20 de julho, quando foi anunciado que a empresa teria vendido 75% de sua posição por US$ 936 milhões – ou seja, com uma perda aproximada de US$ 189 milhões. O efeito no mercado, que vinha se recuperando, foi imediato: o $ BTC, que atingiu os US$ 24 mil com bastante sacrifício, voltou a acumular baixas.
Fato é que a adoção institucional ansiada por muitos no começo de 2021 não veio: o mercado, provavelmente, em virtude da crescente crise global e aversão ao risco, não decolou o quanto se esperava e muitas das “baleias” que tinham vindo a público com um posicionamento favorável aos criptoativos também decidiram reduzir drasticamente sua exposição.
Na minha opinião, resta uma certeza e uma dúvida.
É certo que, por mais que empresas com forte base tecnológica sejam afeitas aos criptoativos, ainda pode ser cedo para considerar os ativos para compor sua tesouraria de forma considerável como fez a Tesla.
O motivo é simples: altíssima volatilidade, que pode levar as reservas financeiras da empresa do céu ao inferno em questão de dias. Por isso, não é uma prática conservadora o suficiente para não interferir no curso natural dos negócios da empresa – que, lembremos, nada tem a ver com criptos.
A dúvida que fica, entretanto, é: qual dos dois tipos de rico que descrevi no começo é Musk? Afinal, ele impactou tanto o mercado de criptoativos simplesmente porque tinha poder para isso – e precisava ostentá-lo – ou, dado o tamanho de sua riqueza e relevância, ele permanece singelo, sendo todo o frisson atribuível às pessoas que o seguem nas redes sociais?
Talvez só tenhamos essa resposta quando seus filhos entrarem na faculdade, a depender do carro que tiverem.
*Helena Margarido é especialista em blockchain e moedas digitais e sócia da Monett |
As informações desta coluna são de inteira responsabilidade do autor e não do InvestNews e das instituições com as quais ele possui ligação.
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