Passados 30 anos desde o fatídico confisco da poupança no governo Collor, o medo do brasileiro de reviver este pesadelo não foi embora. Em meio a uma crise fiscal, com o governo não conseguindo fechar a conta e se debatendo para não furar o teto de gastos, e com milhões de afetados pela pandemia à espera do auxílio emergencial, qual o risco de o governo sequestrar novamente os recursos da caderneta e outros investimentos?
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Se você é daqueles que já tiveram esse medo, saiba que não é o único. Para acabar de uma vez com todas as dúvidas sobre o assunto, o InvestNews conversou com o economista Roberto Dumas, professor do Ibmec/SP e que também viveu na carne o confisco na década de 1990.
Na época com 23 anos, Dumas, filho de empresário, viu todos os recursos acima de 50 mil cruzados serem congelados de sua conta. Ele experimentou também todas as dificuldades que este erro econômico provocou na sociedade. Com esta bagagem, o professor esclarece por que esta história não vai se repetir.
O que foi o confisco da poupança?
Na década de 1990, a inflação brasileira estava pelas nuvens. Na época, a inflação mensal chegou a 30%, o que em termos anuais se traduzia em uma aceleração de 2229,80% nos preços.
Não existia nenhum ponto de comparação com a inflação oficial de hoje, o IPCA, que segundo o último boletim Focus projeta até o final de 2020 uma variação de 1,71%. Ou seja, são mais de 1000 pontos percentuais de diferença com aquela época.
Com uma hiperinflação em 1990, o governo não sabia como proceder para estancar a alta dos preços. Cortes nas taxas de juros não funcionavam, existia uma elevada monetização da dívida pública e muito dinheiro circulando no mercado. Foi quando o governo decidiu tirar de circulação 80% de todos os recursos do mercado e aconteceu o que conhecemos como confisco.
Fernando Collor de Mello, na época recém-eleito como presidente do Brasil, queria domar a inflação na marra, e pegou todo mundo desprevenido na noite de 16 de março de 1990, quando anunciou que os valores depositados nos bancos acima de 50 mil cruzados seriam retidos. O caos estava instalado.
Roberto Dumas explica que foi sequestrado todo recurso considerado poder liberatório que fosse superior a 50 mil cruzados: poupança, dinheiro em conta corrente e investimentos como CDBs e títulos “overnight”.
“No passado, os investidores que emprestavam seu dinheiro para o governo em troca de juros o faziam de um dia para outro. Era o conhecido overnight. Não existia o que conhecemos hoje como títulos públicos, que permitem aplicar o dinheiro por três ou quatro anos”, exemplifica o economista.
Segundo Dumas, o valor de 50 mil cruzados na época era equivalente a pelo menos US$ 1 mil. Hoje, esse valor corresponderia a aproximadamente R$ 5.500.
A restrição ocorreria por 18 meses. Neste período, todo aquele que teve os recursos confiscados, permaneceria com no máximo 50 mil cruzados na conta. O restante do dinheiro sequestrado seria devolvido 1 ano e meio depois, pago em 12 parcelas mensais com correção de juros de 6% ao ano. O dinheiro bloqueado passou a ter seu rendimento com base no Bônus do Tesouro Nacional Fiscal (BTNF).
Para quem aplicava nos títulos overnight, foi permitido apenas o resgate de 20% do rendimento ou até R$ 25 mil cruzados.
“Para você pagar as dividas emitidas antes desta data, você podia emitir um cheque para a pessoa para a qual devia utilizando os cruzados retidos. Este processo era conhecido como transferência de titularidade, que só seria pago quando o recurso da sua conta fosse liberado 18 meses depois”, lembra Dumas.
Além de sequestrar os 50 mil cruzados, o governo também congelou preços e salários. E os preços de serviços como energia foram aumentados. “Sem poder efetivamente pagar dívidas e com a transferência de titularidade, o PIB brasileiro despencou quase 8%”, explica o economista.
Serviu para alguma coisa?
Dumas afirma que confiscar a poupança no governo do Collor foi um tiro no pé, que radicalizou totalmente a solução da dívida pública. “Foi como tacar fogo na casa apenas para assar um frango”, exemplifica. E acrescenta que ao reter todo o dinheiro da população, a atividade econômica foi freada e, para pagar a dívida pública, o dinheiro precisou emitir mais moeda. “Sem contar que surgiram as ‘torneiras de liquidez’ com várias empresas entrando na justiça e conseguindo desbloqueio de alguns recursos”.
Com a dívida pública aumentando e a população sem recursos, o governo precisou emitir moeda para garantir os salários. Para Dumas, o movimento foi totalmente ineficiente pela ausência de reformas do Estado. “Não adiantou nada na época, o custo do funcionalismo público era oneroso e o governo que tinha acabado de paralisar a circulação de dinheiro teve que emitir moeda para pagar seus custos”, diz.
Outro erro do período foi o congelamento dos preços e salários, que muitos vizinhos latino-americanos como Argentina tentam cometer novamente, pelas palavras de Dumas. “Quando um preço é congelado, mexemos em questões de oferta e demanda. Preço baixo gera excesso de demanda e faltam produtos”, explica.
Tão ineficiente foi o plano que, em setembro de 1991, quando os poupadores começaram a receber seu dinheiro de volta pago em parcelas, a inflação brasileira já estava de volta.
O confisco pode acontecer de novo?
Dumas esclarece que o risco de nossos recursos serem confiscados é nulo. Para justificar o porque, ele apresenta quatro motivos. Veja abaixo:
1 – A Emenda Constitucional 31/2001
O primeiro é a Emenda Constitucional 31/2001, que no seu artigo 62 estabelece que não é possível deter ou sequestrar bens da poupança popular ou qualquer ativo financeiro.
Em situações extremas, seria preciso primeiro a aprovação do Congresso Nacional. Por este motivo, Dumas defende que a probabilidade disso ocorrer é zero. “Confiscar poupança, conta corrente e dinheiro de títulos públicos está fora de cogitação”, esclarece.
Além de ser proibido constitucionalmente o confisco de recursos no Brasil, Dumas esclarece que nada é igual ao tempo de Collor. Fazendo uma suposição extremista, se o governo liberasse uma PEC para tentar modificar a Emenda Constitucional, ela precisaria passar por analise do Congresso, também no Senado e até lá todos os investidores teriam retirado seus recursos. “Se uma coisa dessas ocorresse, viraria notícia, e enquanto a PEC tramita, os investidores sacariam os recursos da conta corrente ou da poupança e investiriam em dólar, no exterior ou até embaixo do colchão”, reforça.
2 – Inflação baixa
O segundo motivo pelo qual isso não poderia ocorrer é a inflação baixa com a que vivemos hoje. Segundo o último boletim Focus, a inflação anual projetada até o final de 2020 é de 1,71%, abaixo da meta do governo, que é de 4% ao ano. Ao mês, a inflação seria de, em média, 0,14%. Fica claro que não existe nenhum tipo de comparação com a inflação de 1990, que chegou a 30% ao mês e 2.229,80% ao ano. “Nas condições atuais, com uma inflação tão baixa, o Brasil precisa é emitir moeda no lugar de confiscar”, afirma Dumas.
3 – Necessidade de estímulos
O terceiro motivo fica muito notório nestes tempos de crise. O governo precisa mais do que nunca motivar o consumo para a economia melhorar. É por isso que durante a pandemia liberou diversos recursos, como auxílio emergencial, saque emergencial do FGTS e ainda avalia estabelecer o Renda Brasil. Com uma crise sem inflação, Dumas explica que não há chances de que o governo congele o dinheiro, pelo contrário a prioridade é a liberação de recursos.
4 – Nota de crédito do Brasil
O quarto motivo está relacionado com a confiança que o governo brasileiro ganhou como pagador de dívidas públicas. Lembram que no começo do texto explicamos o conceito de overnight, quando o investidor emprestava de um dia para outro o seu dinheiro ao governo em troca de juros? Atualmente, existem investidores do Tesouro que emprestam seu dinheiro ao governo por muitos anos.
“Para conquistar essa confiança dos investidores, foi um longo processo. O governo não daria calote porque no futuro seria muito difícil que o investidor pessoa física empreste novamente esse recurso”, explica Dumas e acrescenta que mesmo a probabilidade de reestruturar as dívidas do Tesouro, é dizer no lugar de devolver o recurso em 1 ano, devolver em 4, é mínima.
O risco fiscal representa uma ameaça?
Para aqueles que estão receosos de que o governo fure o teto de gastos, Dumas esclarece que não há nenhuma conexão com esse problema econômico e o confisco das poupanças no passado.
As consequências de que o teto de gastos não seja respeitado seriam a inclinação da curva de juros, fazendo com que o consumo diminua mais ainda. “A curva de juros valida quanto um banco cobra de spread. Suponhamos que ele cobra 7% para 10 anos. Se perceber que o governo vai furar o teto, a curva de juros estica e a instituição financeira vai cobrar 12% para o mesmo período”, exemplifica.
Com essa mudança, Dumas aponta que o consumidor prefere deixar o dinheiro aplicado do que consumir. O investimento privado também recua. Surge um processo chamado de dominância fiscal, quando a política fiscal domina as decisões da Política Monetária. Em consequência, o Banco Central se vê limitado de reduzir mais ainda os juros.
Sem consumo e sem juros baixos, novamente o propósito do governo de recuperar a economia se invalida.