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Ações de inclusão racial no capital aberto ainda são raras; elas funcionam?

Apenas 3 empresas listadas na bolsa possuem ações afirmativas de combate ao racismo, segundo levantamento da Sitawi.

De um universo 200 empresas de capital aberto que integram a base de dados da consultoria em finanças sustentáveis e ESG (ambiental, social e governança) Sitawi, apenas três apresentaram ações afirmativas de inclusão racial nos últimos dois anos. O dado foi fornecido com exclusividade ao InvestNews, por ocasião do mês da Consciência Negra, com base em notícias de boas práticas de inclusão e diversidade. Na B3, havia 486 empresas listadas até o final de outubro.

As empresas que aparecem no levantamento são Magazine Luiza (MGLU3), que investiu em inclusão racial por meio de um programa de trainee para pessoas negras; a operadora Tim (TIMS3), que fechou um acordo coletivo de diversidade e inclusão; e a B3 (B3SA3), que anunciou nesta segunda-feira (22) um programa de capacitação em mercado financeiro para negros e pardos.

Ainda entre o capital aberto brasileiro aparece o Carrefour (CRFB3), na categoria de reparações do levantamento. O grupo investiu R$ 144 milhões no combate ao racismo e inclusão racial após a morte de João Alberto Silveira Freitas, homem negro que faleceu após sofrer agressões de dois seguranças em uma unidade da varejista, em novembro de 2020. Confira a entrevista sobre o assunto ao InvestNews com o vice-presidente de Relações Institucionais, Sustentabilidade e Comunicação do Carrefour Brasil, Stephane Engelhard.

Entre as mais importantes, o levantamento identificou um programa para acelerar a carreira de profissionais negros e o fim da terceirização de seguranças do Carrefour, com a contratação de um diretor negro para conduzir mudanças internas.

O levantamento também considera uma empresa presente no Brasil, mas com ações listadas no exterior: o Mercado Livre (MELI34), que possui um BDR acessível na B3 para o pequeno investidor. Dos cerca de 800 BDRs não patrocinados listados na B3 até outubro, o Mercado Livre foi o único a figurar na amostra da Sitawi por práticas recentes de inclusão racial, graças a um programa de contratação de profissionais negros.

O estudo da Sitawi considerou iniciativas divulgadas entre setembro de 2020 e novembro de 2021.

Evandro Ramos, analista de Finanças Sustentáveis da Sitawi
Evandro Ramos, analista de Finanças Sustentáveis da Sitawi

Embora a pauta de inclusão racial esteja engatinhando há alguns anos, o analista de finanças Sustentáveis da Sitawi, Evandro Ramos, esclarece que foi a partir de 2019 e principalmente na pandemia que o movimento começou a ganhar força, puxado por alguns fatores.

Segundo Ramos, um deles foi que, em 2020, com a chegada dos investimentos ESG (governança, social e ambiental), muitas empresas começaram a ter uma consciência global sobre políticas de diversidade, iniciaram debates sobre racismo, além de assumir uma responsabilidade social e ambiental maior.

O analista cita também acontecimentos como a morte de João Alberto e a crise do Carrefour, que aceleraram estas mudanças na pauta de diversidade. Houve também eventos positivos, como a influencia de líderes empresariais que impulsionaram esta pauta. “Luiza Trajano foi um exemplo que puxou essa mobilização social de inclusão racial. Ela despertou um senso de combate ao racismo, somado à tendência ESG e à pandemia que contribuíram para que o debate despontasse”, afirma Ramos.

Apesar destes avanços, o analista da Sitawi reconhece que as empresas de capital aberto brasileiro ainda não contam com uma política efetiva de inclusão racial. “Estamos despertando para isso agora, mas o mercado ainda está engatinhando”, revela.

Assim como existem companhias com boas práticas sociais, ambientais e de governança, há também aquelas que praticam o chamado greenwashing (lavagem verde, em tradução livre) deixando pautas como a diversidade e inclusão apenas no marketing e no discurso. Na tentativa de separar o “joio do trigo”, submetemos as ações afirmativas deste levantamento a especialistas negros que atuam com consultoria ou movimentos que defendem a inclusão racial. Veja a seguir:

Magazine Luiza

Em setembro de 2020, o Magazine Luiza anunciou seu primeiro programa de trainee exclusivo para candidatos negros. O objetivo da companhia era trazer mais diversidade racial para cargos de liderança na companhia, recrutando universitários e recém-formados de todo o Brasil, no início da trajetória profissional.

A novidade gerou revolta em alguns setores da sociedade, o que gerou uma ação civil pública na Justiça do Trabalho contra a varejista. Na época, o defensor Jovino Bento Júnior, autor da petição, apontava a iniciativa como “marketing da lacração” e desnecessária.

O Ministério Publico do Trabalho chegou a rejeitar 11 denúncias contra o programa de trainee e concluiu que a ação era considerada reparação histórica, frente à exclusão da população negra do mercado de trabalho digno por anos, além de ressaltar o amparo que iniciativas como a do Magazine Luiza tinham na Constituição Federal e no Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010).

O programa aconteceu em 2021 e teve mais de 22 mil candidatos. A varejista se destacou como a primeira empresa brasileira a realizar um trainee específico para pessoas negras. Após o sucesso da edição, o Magazine Luiza anunciou uma segunda edição do trainee, que deve ocorrer em 2022.

Os critérios de seleção serão os mesmos: não será exigida fluência em idiomas, o tempo de formação será de três anos e aceitará qualquer licenciatura ou bacharelado. A companhia garantiu que realizará um acompanhamento dos participantes para desenvolver eles até cargos de liderança.

O que especialistas pensam da iniciativa do Magalu?

Tom Mendes, diretor do  ID_BR
Tom Mendes, diretor do ID_BR

Para Tom Mendes, diretor financeiro do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), a iniciativa da Magazine Luiza foi positiva, porque contou no passado com uma preparação prévia da empresa para mapear a representatividade negra no seu corpo de funcionários, com cerca de 51,8% de colaboradores não negros e apenas 21,1% na alta liderança.

A partir de então, a companhia considerou como acolheria as pessoas treinadas e desenvolvê-las até cargos de liderança. “Quando a gente fala de outros programas como estágio, jovem aprendiz, são interessantes, mas não tão efetivos e propositivos como o trainee, porque serão necessários pelo menos 15 anos para desenvolver esse profissional para um cargo C-Level”, explica.

Segundo Mendes, o motivo de o trainee ter gerado tanto incômodo na sociedade foi pela possibilidade dos candidatos se tornarem líderes cedo ou tarde, influenciando outras pessoas negras.

No entanto, o diretor do ID_BR defende que trainee é apenas uma porta de entrada, e existem milhares de iniciativas para empresas de capital aberto, em sua maioria bilionárias, para promover a inclusão racial. “Quando falamos de inclusão racial falamos de metas, prazo, métricas e principalmente investimentos. Não se trata apenas de contratar pessoas negras, é importante treinar internamente outros colaboradores da empresa, garantir igualdade salarial. E criar um plano para acompanhar os trainees: eles estão sendo desenvolvidos? Aprendendo outras línguas? Recebendo promoções igual outros funcionários?”, afirma.

Mendes também destaca que companhias como Magazine Luiza podem influenciar a diversidade na sua cadeia de valor, principalmente com fornecedores de médio e pequeno porte que na sua maioria não tem políticas de igualdade racial.

Já para Wellington Lopes, cientista social e conselheiro da UNEafro, é fundamental que companhias pensem seu trainee muito além das posições de liderança, garantindo espaço para pessoas negras no mercado de trabalho em cargos bem remunerados, que não são necessariamente os da diretoria.

“É fundamental ter negros em posições de liderança, mas não adianta ter um CEO negro e um quadro de funcionários majoritariamente branco”, aponta. Segundo Lopes, existem ótimos técnicos negros que podem disputar diversos espaços no mercado de trabalho, adquirir experiência e se desenvolver em outras áreas.

Mercado Livre

Em abril deste ano, o Mercado Livre anunciou a contratação de 2,5 mil profissionais negros até o final de 2021. De 7,2 mil vagas de emprego, 35% serão voltadas para pessoas negras, com o intuito de rebalancear a diversidade da companhia. Em um universo de 15 mil funcionários no Brasil, 38% se autodeclaravam pretos ou pardos.

O que especialistas pensam da ação do Mercado Livre?

Tom Mendes, do ID_BR, avalia que o Mercado Livre deveria também contar com um programa interno de desenvolvimento, acolhimento e sensibilização dos funcionários e das lideranças. “É importante que as pessoas entendam que não estamos falando de assistencialismo, cota, ou um favor para as pessoas negras, e sim de uma iniciativa que tem um impacto também para a empresa”, diz

Além disso, ele destaca que o número de vagas poderia ser de pelo menos 50% para acompanhar a proporção da população negra no Brasil.

Wellington Lopes acredita que a iniciativa é positiva e, embora a proporção não seja muito elevada, se comparada a outras empresas, é um avanço relevante na pauta racial. Contudo, ele destaca que o Mercado Livre deveria apresentar também quais os problemas e necessidades da companhia que devem ser solucionados com mais profissionais negros. “É muito vazio trazer ações afirmativas sem expor os problemas da empresa e como a diversidade pode contribuir”, defende.

Ele também destaca a importância de a companhia assumir publicamente se a estratégia será permanente, como foi o caso da concorrente Magazine Luiza.

Tim

Em outubro de 2020, a operadora Tim anunciou um acordo coletivo com federações sindicais para ampliar benefícios e políticas de diversidade para seus colaboradores negros, LGBQTI+ e com deficiência.

Na época a companhia se comprometeu a promover um programa de estágio com grupos minoritários, oferecer apoio judicial para os colaboradores em casos de racismo ou discriminação praticados por clientes ou fornecedores, além de um modelo mais flexível de trabalho.

O que os especialistas opinam?

 Wellington Lopes, cientista social e conselheiro da UNEafro
Wellington Lopes, cientista social e conselheiro da UNEafro

Para o cientista social Wellington Lopes, a iniciativa de dar suporte judicial aos colaboradores em casos de racismo no ambiente de trabalho funciona, mas deveriam existir medidas de acompanhamento constante dos funcionários, por meio de comissões.

Ele explica que muitas vezes, os colaboradores se sentem desmotivados a denunciar casos de assédio moral ou racismo, por não se sentirem protegidos pela empresa para ir adiante, ou porque o mecanismo é muito burocrático. “As pessoas precisam ter segurança para sentir a coragem de denunciar determinados acontecimentos”, destaca. “A Tim deveria se questionar se as pessoas se sentem seguras, caso não, o que provoca essa insegurança e como mudar isso”, reforça.

Embora considere a iniciativa positiva, o cientista social destaca que é preciso também olhar para os postos mais simples dentro da companhia, por exemplo, atendentes de telemarketing, que sofrem diretamente com ambientes nocivos.

Tom Mendes aponta que as empresas podem olhar mais para a segmentação nos seus programas de diversidade e inclusão, para estes ganharem cada vez mais efetividade. “Não dá para afirmar que tenho uma estratégia em diversidade e inclusão, quando eu tenho reservas das mesmas vagas específicas para todos os grupos considerados minoritários e minorizados. Precisamos ter metas, métricas, prazos e investimento para todos os grupos quando se fala em diversidade”, defende.

Respostas ao racismo corporativo

Desde novembro de 2020, o Carrefour embarcou em um jornada para combater o racismo, com um investimento de R$ 144 milhões em 8 compromissos e 72 ações afirmativas.

Em entrevista ao InvestNews, um dos seus executivos afirmou que as principais conquistas foram instaurar o programa “Tolerância Zero” frente ao racismo, em todas as lojas, parceiros e fornecedores, criar um modelo de segurança menos terceirizado, mais humano e com lideranças negras, além de um novo sistema de câmeras nos uniformes dos seguranças, implantado até o momento em 10 lojas dos hipermercado.

Do montante total investido, a companhia afirma que destinou R$ 68 milhões para investir em bolsas de estudo para pessoas negras e pardas, incentivo a empreendedores, e formação de lideranças.

O que especialistas pensam da ação do Carrefour?

Para Tom Mendes, o Carrefour tem evoluído bastante nas estratégias de inclusão racial, mas ainda está no começo da jornada e deverá investir mais recursos para crescer de forma contínua.

Entre os pontos de melhora, ele destaca que as lideranças do Carrefour precisam abraçar mais a causa de combate ao racismo, para o investimento não ser apenas financeiro e sim lado a lado com os movimentos sociais.

Ele também cita que a morte de João Alberto foi o propulsor de uma virada de chave institucional para a companhia, mas que deve continuar criando mais práticas propositivas para evitar novos incidentes de morte ou racismo.

A varejista estaria se aproximando inclusive do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) para entrar em uma jornada antirracista de 1 ano, que reforce o compromisso da empresa com a causa. Caso o Carrefour tenha sucesso na jornada, poderá garantir um selo do ID_BR que prove seu comprometimento real com o combate ao racismo.

Entre os pontos de melhoria, Mendes destaca que o sistema de câmeras nos uniformes deveria ser implantando em todas as lojas do país para ter efetividade. O Carrefour aponta que isso deve ocorrer até 31 de dezembro de 2021.

Outra questão é o investimento, que segundo Mendes, deve ser um pilar pelas companhias de capital aberto. “As empresas como um todo devem parar de investir migalhas. Não dá para fazer diversidade sem investimento e avião de asa quebrada não levanta voo”, comenta.

Apesar das diversas iniciativas do Carrefour e as parcerias com movimentos negros, Wellington Lopes enxerga as ações da companhia como “puro marketing” e cobra do mercado de capitais e da sociedade uma responsabilização criminal pelo homicídio.

“Em que lugar do mundo se viu que para reparar um homicídio você crie medidas de reparação comunitária? Sem punir ninguém criminalmente”, questiona. Wellington aponta que não apenas os seguranças deveriam ser punidos e sim o Carrefour como companhia.

Ele também destaca que R$ 144 milhões é um valor irrisório para uma empresa bilionária de capital aberto. “No dia da morte do João Alberto as ações do Carrefour caíram, mas se recuperaram depois”, diz. Segundo o cientista social, uma medida de reparação justa seria que as ações da varejista encerrem sua negociação na bolsa de valores.

Guia de boas práticas

Mulheres negras trabalhando em frente ao computador.

O analista de finanças sustentáveis da Sitawi, Evandro Ramos, apresenta algumas dicas para que companhias de capital aberto possam trabalhar com efetividade suas estratégias de inclusão social e ações afirmativas.

  • Metas claras com os processos seletivos e trainees: não se trata apenas de abrir um processo seletivo para colocar pessoas negras para dentro da empresa, devem existir políticas de diversidade bem estabelecidas, respaldadas com compromissos públicos, preparo da equipe e desenvolvimento dos novos funcionários até a alta gestão.
  • Consciências das dificuldades dos profissionais: nem todos os colaboradores que entraram na empresa por meio de trainees possuem o preparo educacional para se adaptar as exigências da empresa. Muitas vezes a população negra não transitou entre gestores e diretores e não almejam estes cargos. Segundo Ramos, é preciso desenvolver respeitando estas particularidades.
  • Mecanismos de acolhimento e desenvolvimento: desde o processo seletivo até o trabalho no dia a dia, a empresa precisa ter um sistema humanizado, preparar a equipe interna para receber os novos colaboradores, combater o racismo e acolher pessoas com bagagem diferente. “Desenvolver o RH e mecanismos de acolhimento é essencial para desenvolver ações afirmativas”, diz o analista.
  • Compromisso e metas públicas com o mercado: algumas companhias de capital aberto tem atrelado suas metas de diversidade a títulos de dívida no exterior. É o caso da B3, que se comprometeu a criar um índice de diversidade até 2024 e elevar o número de funcionárias mulheres, meta que atrelou a um Sustainability Linked Bond (SLB) no valor de US$ 700 milhões. Outro exemplo é a Suzano (SUZB3), que já teve suas metas em diversidade de gênero atreladas a um social bond. “É um sistema ganha-ganha, a sociedade se beneficia com a diversidade e as empresas conseguem recursos mais baratos se cumprirem as metas”, afirma Ramos.

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